Um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os pequenos defeitos, que temos por costume censurar nela.
Quando o império do amor e da piedade deve reger a vida, aceita então ela de nós, com sorrisos de brandura, o ceptro de soberana.
E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce, é absoluto; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.
Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali; fitava, sem constrangimento, os expressivos olhos negros no rosto de Daniel, como se para nele espiar o passar das ideias, que o exame do doente lhe fosse sugerindo.
Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o deixava pensar!
O enleado agora era Daniel. Com os olhos no rosto cadavérico do enfermo, comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado, quase nem tinha consciência do que fazia.
Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele - porque há fenómenos assim - e sentindo-o - desgraçada natureza a sua!
- em vez do médico impassível e atento, que devera ser, já não era senão o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação.
Enfim terminou aquele exame longo, mas distraído, e depois de algumas perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar.
Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da cadeira, na qual Daniel se sentara.
Era o bastante para tirar a este toda a tranquilidade.
A seu pesar, a mão tremia-lhe ao escrever.
Clara pôs-se a rir.
- De que se ri? - perguntou Daniel, voltando-se.
- Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe a mão assim, que o João Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina uma sentença de morte.
Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.
- Isto é nervoso - disse ele, levantando-se.