Nunca mais se apagava da memória a imagem da simpática rapariga, vista uma vez sob tão prestigioso aspecto.
Lutando entre a paixão e o respeito, entre o amor que sentia nascer em si, veemente como nunca, e um vago enleio de timidez, novo para ele, Daniel não podia tirar os olhos daquela saudosa figura de virgem em oração, que lhe parecia quase sobrenatural.
A agonia do velho acalmou, como se por efeito das preces de Margarida. Foi, pouco a pouco, decaindo da ansiedade num profundo abatimento; a respiração fazia-se a custo e com grandes intervalos; a cabeça pendia-lhe desfalecida. Depois os olhos, já embaciados, voltaram-se lentamente para o lugar, onde Margarida rezava ainda; agitaram-se-lhe os lábios como a balbuciarem um nome - o dela -; um sorriso de suave placidez cobriu aquelas feições como do reflexo da felicidade suprema, e uma lágrima, a última, rolou-lhe pelas faces, vagarosa, solitária.
- Veja, veja - disse em voz baixa Margarida para Daniel, sem desviar o olhar do rosto do velho, onde estas mudanças se sucediam rápidas.
Daniel inclinou-se sobre o peito do moribundo, e conservou-se por algum tempo assim.
Ao erguer de novo a cabeça, apenas disse:
- Está morto.
Ao ouvir esta fatal palavra, Margarida, sufocada de pranto, apoderou-se da mão do seu velho amigo, cadáver já, e cobriu-a de beijos e de lágrimas.
Reinou por algum tempo o silêncio na sala. Interrompia-o apenas o soluçar da afectuosa rapariga.
- Margarida - disse-lhe enfim Daniel, que estivera presenciando mudo aquela dor generosa - é diante deste cadáver, que lhe vou falar agora. Foi Deus que me trouxe a esta casa. Disse-o há pouco, não disse? E foi; creio agora que foi. O lugar é para mim tão sagrado, como o interior de um santuário.