Não, tu não és de gelo, como dizias. Quem sabia perdoar, como tu, e desde bem pequena principiaste a fazê-lo! quem sabia como tu estimar e proteger uma irmã, podia lá ter fechado o coração para o mais? para o amor? E que amor que lá guardas, há tanto! e que ainda agora queres abafar; como julgas que o hás-de fazer, doida? Que hás-de tu pôr no lugar dele?
- A tua amizade, Clara - redarguiu Margarida, beijando-a, sensibilizada. - Essa me bastará. Amava-te já muito, minha filha, mas agora sinto que inda hei-de vir a amar-te mais. Até aqui, estremecia-te como a uma criança bonita, meiga, carinhosa e - acrescentou com um leve sorriso - com suas perrices também. Tudo o que nos agrada, que nos enfeitiça nas crianças, agradava-me, enfeitiçava-me em ti. Mas agora, Clara, apareces-me outra. Como aquele momento de dor, que passaste, te fizesse de repente mulher, falas-me, como ainda te não ouvira; sentes, pensas, e... adivinhas até, como julguei que nunca o farias. Agora sim; vejo que terminou a minha tarefa de protectora, a tarefa de que tua mãe me encarregou. Estás uma mulher, Clarinha. Agora posso tomar-te por confidente e conselheira até. Tens o direito a sê-lo, tu, a única pessoa, que me adivinhou. É teu o meu segredo... porque mo roubaste, vamos. Vê que já me não envergonho de dizer-te que me adivinhaste. Sim, é certo que este... esta loucura viveu comigo, cresceu comigo e quem sabe até se comigo morrerá? é uma companhia a que me afiz, mas nunca deixei de a conhecer pelo que ela é, uma louca. Estou como aquela viúva do Outeiro que rodeia de cuidados e amor o filho doido que tem. E queres agora que vá assim arriscar o meu futuro, o futuro do meu coração, que é o que eu mais prezo, para satisfazer esta loucura? Diz: não, tu não hás-de exigir isso de mim.