E agora como que o passado inteiro, aquele passado de ambos, lhe apareceu com o prestígio da saudade e dourou-se-lhe o futuro com o fulgor das esperanças.
Estes pensamentos trouxeram-lhe o sorriso aos lábios, e a confiança ao coração.
Margarida, alvoroçada com as novas sensações recebidas, voltou- se para a irmã, que sorria, porque lhe estava a ler na alma.
Margarida corou, e retirando a sua da mão de Daniel, foi esconder a fronte entre os braços de Clara.
- Então? - disse-lhe esta ao ouvido - devo pedir perdão, ou alvíssaras, minha teimosa? Ora diz-me se o que sentes agora no coração te causa grande dor e se te obriga a querer-me muito mal, por o que fiz?
Margarida respondeu-lhe, apertando-a ao seio.
Era feliz naquele momento.
Nisto ouviu-se uma voz que bradava da rua:
- Ó Reitor! Ó Abade! Ouves? Ó Padre António! Ó homem!
O reitor chegou à janela, a verificar quem era; conquanto tivesse já, pelo estilo, quase conhecido o homem.
- Ah! és tu, João Semana? Sobe.
- Nada, nada; desce tu, que tenho que te falar.
E João Semana dizia isto com a voz sobressaltada e o gesto assombrado de inquietação.
- E eu digo-te que subas.
- Não subo tal; o que tenho a contar-te não se pode contar aí.
- Ah! já vejo que ouviste também a história do dia! - disse o reitor, que suspeitou do que se tratava.
- Ouvi, ouvi e o que me parece é que tu a não sabes toda, Abade; se a soubesses, não estavas aí com tantas pachorras.
- Achas? Pois eu não me sinto hoje de maré para me afadigar.
Sobe, João Semana, sobe.
- E se eu te disser que enquanto tu aí estás, muito descansado, talvez esteja a correr sangue...
- Então deixaste alguma sangria mal vedada, João Semana? Ah! ah!...
E o reitor achava deliciosa a mortificação em que via o seu velho amigo.