- Se for para o meu padrinho, o que quiser - respondeu Clara.
- Está bom. Não é má de todo. Passa-ma aí para a canastra do criado, enquanto eu faço contas.
E, ao passo que a afilhada cumpria a ordem recebida, ele mexia e remexia nos bolsos do colete, donde tirou não sei que moeda em ouro, que quadruplicava o preço da fruta, e passou-a para as mãos de Clara, dizendo:
- Aí tens; o que crescer é para um lenço.
- Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me as suas bênçãos.
- Vai com Deus, rapariga, e faze visitas à tua gente - respondeu o cónego, dando-lhe a mão a beijar.
Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe:
- Vê, vê, não te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos para tremoços.
Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas de gratidão.
Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas da aversão que nunca deixara de sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na afectuosa caridade com que a tratava.
A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável.
Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu procedimento para com Margarida.
À hora da morte, chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos, disse-lhe entre soluços:
- Guida - pela primeira vez lhe deu este nome afectuoso - perdoa-me! Deus alumiou-me o espírito. só agora conheço a minha maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me, minha filha, e sê generosa até ao fim. Clara fica só, é ainda muito criança. Lembra-te que ela é tua irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela.