De facto, não fora sem certa comoção de suspeitosa natureza, que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas gradações, afugentar das reminiscências da boa rapariga a do pequeno Daniel, que ela conhecera outrora; não foi sem íntimas turbações de ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado, a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para um futuro que, agradavelmente e melancolicamente também, agitava o coração da ingénua cismadora.
Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga realidade do presente desencantado, mas era inevitável. O destino decidira de outra sorte.
- Vamos - dizia Margarida a si mesma. - Que mulher sou eu? Quando precisava de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho a pensar... não sei em quê. Pensar!... É um luxo, com que não podem os pobres - acrescentava, sorrindo amargamente. - É um prazer de ricos e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado a pensar assim.
- Clara vai casar - cismava ela depois. - É forçoso que me separe dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina ideia de viver pelo trabalho; dele só e com ele deve ser agora principal- mente o meu viver. É custoso, porque queria deveras a esta pobre criança, mas é necessário. Um dia podia vir a causar-lhe involuntariamente mal, se ficasse. Hei-de partir.