Com audácia, mal encoberta por transparente modéstia, o barbeiro expôs assim a sua opinião:
- Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes, aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a doentinha tem aqueles pasmos, que se vêem. Ora os sinapismos, puxando-lhe os humores para os pés, algum bem lhe podem fazer. Mas eu por mim, Sr. João Semana, penso que nestas doenças de retrocesso, a matéria reimosa não sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa - e fel, que é ainda pior - isso é que há. Já vê então... mas isto digo eu; agora lá os senhores, que estudaram... - acrescentava humildemente, mas obliquando para Daniel um olhar, de quem estava satisfeito de si.
Daniel tratou senhorilmente este colega de contrabando e na ocasião em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição de uma teoria sua, na qual ferviam os humores, os flatos, as matérias reimosas, os postemas e não sei que mais, em indigesta caldeirada, interrompeu-o perguntando-lhe secamente.
- Teve hoje muito que fazer, mestre?
O barbeiro acolheu a pergunta com um sorriso e uma mesura.
- Está feito. Apenas fiz três visitas.
- E quantas barbas?
O mestre mordeu os beiços, antes de responder:
- Nenhuma.
Este colega do célebre Oliveiro - o gamo - não gostava que lhe falassem na única das coisas em que era eminente.
É uma fraqueza esta mais comum à humanidade, do que talvez se julga.
João Semana reparara nesta curta cena, e tomando de parte Daniel, aconselhou-o a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como colega, sob pena de indispor contra si a primeira gente da terra.
- Meu caro amigo - concluía ele - quem quiser viver bem neste mundo faz a vista grossa a muita coisa. Está bom, está!
E, como para não perder um hábito antigo, acrescentou:
- Você quer saber? quando eu andei no Porto, conheci lá um frade, que era pregador de nomeada.