A Queda de um Anjo - Cap. 23: Capítulo 23 Pág. 125 / 207

Esta pungente lancetada não esvurmou o apostema do peito de Calisto de Barbuda. Desde que qualquer sujeito perde o siso do coração, escusado é esperar que a razão lho restaure; em tão boa hora que ele o recupere depois de amargas provas. O homem, porém, que amanhece tolo aos quarenta e quatro anos, a mim me quer parecer que, ao entardecer-lhe a vida, a tolice refinará.

Tenho dois grandes exemplos disto: um é Calisto de Caçarelhos; o outro é Henrique VIII de Inglaterra. Este, aí pelas alturas dos quarenta anos, tão bom homem era que até escrevia contra ímpio Lutero, e vivia santamente com sua esposa, Catarina de Aragão. Ensandeceu de amor, vinte anos depois de marido exemplar, e daí por diante sabe o leitor que golpes ele deu no peito invulnerável do papa e no frágil pescoço das pobres mulheres.

Calisto Elói não será capaz de repudiar nem degolar Teodora, porque neste país há leis que reprimem os patetas sanguinários; todavia, eu não assevero que ele seja incapaz, alguma hora, de lhe chamar parva e hedionda, e de lhe atirar com a touca e com o lençol azul de três pontas à cara vermelha de pudor. Veremos.

Calisto, digamo-lo sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao fundo do pego em que deram a ossada o último rei dos godos, e Marco António, e o rei enfeitiçado pela comborça Leonor Teles, e Simplício da Paixão, e várias pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os sistemas de desfazer a vida, desde o muro de S. Pedro de Alcântara até às cabeças dos palitos fosfóricos.





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