As Pupilas do Senhor Reitor - Cap. 8: VIII Pág. 46 / 332

Nesta noite pensou também em Daniel; pensando nele, e naqueles breves momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão dos montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá; e esqueceu o frio e o medonho da noite - que um e outro lhos fizera desvanecer a vara mágica da fantasia; - e insensivelmente a mão que fiava, descaíram-lhe os braços, vergou a cabeça melancólica, e o pensamento perdeu-se em longa e abstracta contemplação, que, sem transição apreciável, terminou num sono profundo.

Encontraram-se e confundiram-se os últimos devaneios da vigília, com os primeiros sonhos em que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.

Clara não pudera, porém, adormecer com a ideia do sacrifício, imposto à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe, ouvia o som do soluçar de Margarida, e isto era um martírio para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da irmã, que já não tinha nenhum amparo, e, rezando assim, chorava ainda mais do que ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar deu-lhe a certeza de que a mãe havia já caído no sono.

Clara não hesitou mais.

Com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou- -se para a cozinha, onde Margarida já tinha adormecido. Clara não a acordou. Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou- se ao lado dela e tirando-lhe subtilmente a roca da cinta, pôs- -se, por sua vez, a trabalhar.

Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia... sonhava ainda.

Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que a mãe tivesse acordado; por isso mal teve tempo de correr a meter-se no leito, procurando não excitar a desconfiança materna, e não pôde chamar a irmã para a mandar deitar.





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