- Na recusa que esta manhã...
- Ah!... já me nem lembrava... Não se falou mais em tal.
Daniel baixou a cabeça. O reitor julgou perceber-lhe no rosto sinais não simulados de tristeza e condoeu-se dele.
- E nós cá - disse, batendo no ombro - como vamos? A que paixão se traz agora aforado o coração? Aí nunca pode medrar coisa que preste; é um terreno movediço, como o das areias.
- As plantas de fundas raízes também as sabem prender.
- Mas levam um tempo!... E nem sempre vingam. Aí está que bem antiga foi a primeira sementeira dessa, que traz agora no coração, se é que a traz, mas não vingou dessa vez ao que parece.
- Que quer dizer? - perguntou Daniel, olhando para o reitor, a quem não entendia.
- Homens que não têm sempre presentes os tempos de criança, os mais felizes e os mais inocentes tempos da vida... Deus me livre deles. Há-de haver dez anos... - E de repente, parecendo interromper o pensamento, que ia exprimir, o reitor saiu e, já da rua, cantou a meia voz, e afastando-se lentamente:
Andava a pobre cabreira,
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia,
Até a noite fechar.
- Ah! - exclamou Daniel, como se naquele instante lhe ocorrera um pensamento inesperado.
O reitor tinha já desaparecido.
Aquela exclamação abriu no espírito do antigo companheiro de Guida uma longa sucessão de memórias e de pensamentos, aos quais o deixaremos entregue.
Às dez horas da manhã do dia seguinte, o pároco, passando por casa de Margarida, resolveu entrar, não obstante saber serem aquelas horas de ocupação para a sua pupila.
O reitor muitas vezes gostava de assistir às lições das crianças e até de auxiliar Margarida, tomando algumas também.
Com este projecto subiu vagarosamente as escadas; ao subi-las, estranhou o silêncio que havia em casa, de ordinário, àquela hora, ruidosa de vozes infantis.