Sentia já o frio agudo do ferro quando o cavalheiro que vêem aqui carregou por seu turno sobre eles, matou o que me agarrava pelos cabelos com um tiro de pistola e rachou a cabeça ao que se preparava para me cortar o pescoço com uma sabrada. O cavalheiro resolvera salvar um homem naquele dia e o acaso quis que fosse eu. Quando for rico, encarregarei Klagmann ou Marochetti de fazerem uma estátua ao Acaso.
- É verdade - confirmou Morrel, sorrindo. - Estávamos a 5 de Setembro, isto é, no aniversário do dia em que o meu pai foi miraculosamente salvo. Por isso, tanto quanto me é possível, comemoro todos os anos esse dia com qualquer acção...
- Heróica, não é verdade? - interrompeu-o Château-Renaud. - Em resumo, fui eu o escolhido. Mas isto não é tudo. Depois de me salvar do ferro, salvou-me do frio, dando-me, não metade da sua capa, como fazia S. Martinho, mas sim toda inteira. E depois salvou-me da fome dividindo comigo... adivinham o quê?
- Uma empada do Félix! - perguntou Beauchamp.
- Não, o seu cavalo, do qual comemos ambos um naco deveras apetitoso. Que duro!
- O quê, o cavalo? - perguntou, rindo, Morcerf.
- Não, o sacrifício - respondeu Château-Renaud. - Perguntem a Debray se sacrificaria o seu inglês por um estranho.
- Por um estranho, não; mas por um amigo, talvez - disse Debray
- Adivinhei que se tornaria meu amigo, Sr. Barão - declarou Morrel. - Aliás, como já tive a honra de lhos dizer, heroísmo ou não, sacrifício ou não, naquele dia devia uma oferenda à má sorte em recompensa do favor que outrora nos fizera a boa.
- A história a que o Sr. Morrel se refere - continuou Château-Renaud - é uma história admirável que ele lhes contará um dia, quando o conhecerem melhor. Por hoje, abasteçamos o estômago e não a memória. A que horas almoça você, Albert?
- Às dez e meia.
- Exactas? - perguntou Debray, puxando do relógio.
- Oh, espero que me concedam os cinco minutos da praxe, porque também espero um salvador! - redarguiu Morcerf.
- De quem?
- Meu, ora essa! - respondeu Morcerf - Ou julgam que não posso ser salvo como qualquer outro e que só os árabes cortam cabeças? O nosso almoço é um almoço filantrópico e teremos à mesa, pelo menos assim espero, dois benfeitores da humanidade.
- Como havemos de resolver isso se só temos um Prémio Montyon? - perguntou Debray.
- Ora, dá-lo-ão a alguém que não tenha feito nada para o merecer - sugeriu Beauchamp. - Não é assim que habitualmente a Academia se tira de apuros?
- E donde vem ele? - perguntou Debray. - Desculpe a insistência, bem sei que já respondeu a esta pergunta, mas tão vagamente que me permito fazê-la segunda vez.