Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este ardia-lhe só de um lado. Afinal não fumou.
Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária de Gennaro na Lucrécia:
Di pescator ignobile
Esser figliuol credei.
Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam todos a olhar para cima, boquiabertos, admirando aquele acesso de fúria musical.
- Bom - pensou Daniel. - Estou dando escândalo e a arriscar a minha reputação de homem sisudo.
E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela.
Depois passeou, sentou-se, ergueu-se de novo e tornou a passear.
Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na porta da janela, as seguintes palavras:
Coge-çofar - Sumatra - Telescópio - Manon Lescaut.
O oculto fio lógico, que encadeava estas quatro palavras na mente de Daniel, é um mistério que eu não sei decifrar.
O giz gastou-se.
- Ó doce vida de aldeia! - exclamou por fim Daniel, com amargura. - Ó sonho dourado dos poetas de geórgicas e idílios, como eu me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há- -de fazer no campo a estas horas do dia? Que vida! que vida esta! meu Deus! Que vida! e que futuro!
Ao dizer isto, lançou casualmente os olhos para o leito e, como se este lhe desse a resposta do que ele queria perguntar ao cantor de Eneias, deitou-se.
Deitou-se de costas e pôs-se então a contar as tábuas do tecto.
Contou dezassete.
- Dezassete, noves fora, oito - disse insensivelmente Daniel.
Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá consigo muito esta, na verdade admirável, coincidência.