Margarida resignou-se a não entender.
Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática que a originou.
Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar.
Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com certo despeito mal encoberto:
- Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.
- Mas depois... amanhã...
- Amanhã? Que tem? Sossega que não te castigo. E demais inda tens muito tempo. Não vês que eu só venho de tarde?
- Mas...
- Mas... agora não quero que estudes, quero que cantes.
- Ora cantar! Que hei-de eu cantar?
- A cantiga da morena.
- Eu não gosto dela.
- Não?
- Eu, não.
- Então qual gostas mais, Guida? - perguntou Daniel, dando, à pergunta e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Margarida, uma música de afectuoso galanteio, que não deixaria ficar mal ninguém.
- A da Cabreira é muito mais bonita.
- Já me não lembra bem. Pois então a da Cabreira.
- Agora não.
- Agora sim; e porque a não hás-de cantar agora?
- A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem; eu não.
- Ora adeus, ela é ainda uma criança - disse Daniel com um soberbo gesto de homem. - Eu quero-a ouvir a ti.
- Eu julgo que nem a sei.
- Sabes, sabes, vamos a ver.
- Olhe... eu canto, mas...
E Margarida pôs-se então a cantar e com voz tão sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, numa posição mais cómoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas, na ausência destas condições de juízo desapaixonado, foi um crítico como quase todos.
Aí vai o que ela cantava, em uma dessas singelas e monótonas melopeias de quase todas as nossas xácaras populares:
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.