conheciam bem, principiou a cantar:
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Todas as vozes de raparigas, como por impulso comum, juntaram- se em coro e terminaram na mesma toada a quadra:
Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.
Clara continuou:
De pequenina nos montes,
E prosseguiu o coro:
Nunca teve outro brincar,
Nas canseiras do trabalho,
Seus dias vira passar.
A letra e a música desta cantiga ou xácara popular comoveram intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas, avivando- lhe imagens, quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que todas, o enlevara. Era a da pequena Guida, da sua companheira de infância, a quem tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava também duma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de Clara alguma coisa julgou Daniel descobrir da inocente criança, que recebera então as primícias do seu coração infantil, mas apaixonado já. Esta primeira analogia fez-lhe notar que no olhar também, no gesto e no rir a havia igualmente e isto obrigava Daniel a fitar em Clara olhos mais observadores que nunca.
Dentro em pouco esquecera-se do que primeiro o levara à contemplação e, sem já pensar na pequena guardadora de rebanhos, continuava a olhar para Clara com uma atenção não encoberta.
No entretanto Clara continuava cantando:
Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar.
E as raparigas todas seguiam:
Porque chorava a cabreira
Agora haveis de...
- Milho-rei! milho-rei! milho-rei! - rompeu de um lado uma voz, e esta tríplice exclamação tudo pôs em desordem; interrompeu o canto, e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se deixava cair.
Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.