Esta, não lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudentemente estabelecer-se, entre ambos, certa cumplicidade, que estimulava Daniel.
A isto sucederam-se frases de galanteio, ditas a meia voz, e olhares que a não deixavam; por acaso, encontravam-se-lhes às vezes as mãos, e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.
A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, se não fascinada, nem tentava fugir-lhe, nem ousava repreendê-lo; sentia-se triste, no meio duma festa em que todos riam. Triste, ela!
Pela meia-noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças.
Clara não quis dançar; veio sentar-se junto de José das Dornas.
Daniel sentou-se outra vez junto dela.
Dentro em pouco, o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem cessar, mas ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escutava-o em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.
Aquela maneira de conversar, o que ele lhe dizia, e as palavras, de que usava, tudo lhe era desconhecido; impressionavam-na e agradavam-lhe, como uma novidade. Ela mal poderia explicar o estado do seu espírito naquele momento.
Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto que outra a mandava desconfiar daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música melodiosa.
- Mas, Clarinha, repare que ainda não teve uma só palavra que me dissesse! - segredou-lhe Daniel, por fim, com afectuosa inflexão de voz.
- E que quer que eu lhe diga?
- Pois não se lembra de nada?
- De nada. A minha cabeça não tem neste momento muito para me dar.
- Oh! mas não lhe peça nada também; peça antes ao coração.
- Que posso eu pedir ao coração que lhe sirva? - perguntou Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.
- Se ele não tiver que dar, que se dê a si próprio - respondeu Daniel em voz mais baixa.