- Veja - disse-lhe ele -, está tudo aqui. Há mais ou menos oito dias que escrevi a palavra «fim» no fundo da sexagésima oitava tira. Para as fazer rasguei duas das minhas camisas e todos os lenços que possuía. Se algum dia voltar a ser livre e houver em toda a Itália um editor que se atreva a editar-me a minha reputação está feita.
- Claro, bem vejo - respondeu Dantès. - E agora mostre-me, peço-lhe, as penas com que escreveu esta obra.
- Veja - disse Faria.
E mostrou ao jovem uma hastezinha de seis polegadas de comprimento e da grossura do cabo de um pincel, na extremidade e à volta do qual se encontrava ligada por uma linha uma das tais cartilagens, ainda suja de tinta, de que o abade falara a Dantès. Era alongada em bico e tendida como uma pena vulgar.
Dantès examinou-a e procurou com a vista o instrumento com que pudera ser talhada tão correctamente.
- Ah, sim! - disse Faria. - O canivete, não é verdade? É a minha obra-prima. Fi-lo, assim como esta faca, de um velho castiçal de ferro.
O canivete cortava como uma navalha de barba. Quanto à faca, tinha a vantagem de poder servir ao mesmo tempo de faca e punhal.
Dantès examinou os diversos objectos com a mesma atenção com que nas lojas de curiosidades de Marselha examinara noutros tempos, vezes, instrumentos executados por selvagens e trazidos dos mares do Sul pelos comandantes de longo curso.
- Quanto à tinta - disse Faria -, já sabe como procedo. Faço-a à medida que preciso dela.
- Agora há ainda uma coisa que me admira - declarou Dantès - que os dias lhe tenham chegado para fazer tudo isso.
- Também tinha as noites - respondeu Faria.
- As noites? Não me diga que é da natureza dos gatos e vê claro durante a noite!
- Não, mas Deus deu, ao homem a inteligência para o compensar da pobreza dos sentidos. Arranjei luz.
- Como?
- Retiro a gordura da carne que me dão, derreto-a e obtenho assim uma espécie de óleo grosso. Olhe, aqui tem a minha vela.
E o abade mostrou a Dantès uma espécie de lampião semelhante aos da iluminação pública.
- Mas o lume?
- Aqui tem duas pedras e pano queimado.
- E as acendalhas?
- Simulei uma doença de pele e pedi enxofre, que me deram.
Dantès pousou os objectos que tinha na mão em cima da mesa e baixou a cabeça, esmagado pela perseverança e pela força daquele espírito.
- Mas isto não, é tudo - continuou Faria. - Não devemos guardar todos os nossos tesouros num único esconderijo. Fechemos este.
Empurraram a laje para o seu lugar. O abade espalhou um pouco de pó por cima dela e depois passou com o pé para fazer desaparecer qualquer vestígio de solução de continuidade, dirigiu-se para a cama e afastou-a.