- Não, mas faz-se compreender.
- Como assim?
- Com a ajuda do olhar. Os seus olhos continuaram a viver e, como vê, matam.
- Meu amigo - disse a Sr.ª de Villefort, que acabava de entrar por seu turno -, não estará a exagerar a situação?
- Minha senhora... - cumprimentou o conde, inclinando-se.
A Sr.ª de Villefort retribuiu o cumprimento com o seu mais gracioso sorriso.
- Pois muito me conta, Sr. de Villefort. Que desgraça incompreensível!... - exclamou Monte-Cristo.
- Incompreensível, diz bem! - concordou o procurador régio, encolhendo os ombros. - Um capricho de velho!
- E não há maneira de o levar a desistir dessa decisão?
- Claro que há - respondeu a Sr.ª de Villefort. - E depende até do meu marido que esse testamento, em vez de ser feito em detrimento de Valentine, seja pelo contrário feito a seu favor.
O conde, vendo que os dois esposos começavam a falar por meias palavras, tomou um ar distraído e olhou com a mais profunda atenção e a aprovação mais completa o jovem Édouard, que deitava tinta de escrever no bebedouro dos pássaros.
- Minha querida - disse Villefort, respondendo à mulher bem sabe que gosto pouco de armar em patriarca em minha casa e que nunca acreditei que o destino do universo dependesse de um aceno da minha cabeça. No entanto, desejo que as minhas decisões sejam respeitadas na minha família e que a loucura de um velho e o capricho de uma criança não deitem por terra um projecto traçado no meu espírito há muitos anos. O barão de Epinay era meu amigo, como sabe, e uma aliança com o filho é convenientíssima.
- Acha que Valentine está combinada com ele?... - perguntou a Sr.ª de Villefort. - Com efeito... ela sempre se opôs ao casamento e não me admiraria que tudo o que acabamos de ver e ouvir fosse a execução de um plano concertado entre ambos.
- Ninguém renuncia assim, acredite, a uma fortuna de novecentos mil francos - respondeu Villefort.
- Ela renunciaria ao mundo, senhor. Ainda há um ano queria entrar para um convento.
- Não importa - prosseguiu Villefort. - Insisto em que esse casamento tem de se realizar!
- Apesar da vontade do seu pai? - perguntou a Sr.ª de Villefort, ferindo outra corda. - é muito grave!...
Monte-Cristo simulava nada ouvir, embora não perdesse uma palavra do que se dizia.
- Senhora - prosseguiu Villefort -, posso dizer que sempre respeitei o meu pai, porque ao sentimento natural da geração se juntava a consciência da sua superioridade moral; porque, enfim, um pai é sagrado a dois títulos, sagrado como nosso criador e sagrado como nosso senhor; mas hoje tenho de renunciar a reconhecer uma inteligência no velho que, baseado numa simples recordação de rancor para com o pai, persegue assim o filho.