Segunda fortuna desce para ti do céu, recuperas ao mesmo tempo o dinheiro e a tranquilidade, podes recomeçar a viver a vida de todos os homens, tu que foras condenado a viver a dos forçados. Então, miserável, então atreves-te a tentar Deus pela terceira vez. «Não tenho o suficiente», dizes tu, quando tinhas mais do que alguma vez tiveras, e cometes terceiro crime, sem razão, sem desculpa. Deus cansou-se, Deus castigou-te.
Caderousse enfraquecia a olhos vistos.
- Quero beber... tenho sede... ardo! - balbuciou.
Monte-Cristo deu-lhe um copo de água.
- Esse celerado do Benedetto - disse Caderousse, restituindo o copo - escapará, apesar de tudo...
- Ninguém escapará, sou eu que to digo, Caderousse... Benedetto será castigado!
- Então também o senhor será castigado - redarguiu Caderousse -, porque não cumpriu o seu dever de padre... Devia impedir Benedetto de me matar.
- Eu - disse o conde com um sorriso que gelou de terror o moribundo -, eu impedir Benedetto de te matar quando acabavas de quebrar a tua navalha contra a cota de malha que me cobria o peito?... Sim, talvez se te tivesse encontrado humilde e arrependido tivesse impedido Benedetto de te matar; mas encontrei-te orgulhoso e sanguinário e deixei cumprir-se a vontade de Deus!
- Não acredito em Deus! - bramiu Caderousse. - E tu também não. Tu mentes... mentes!
- Cala-te, se não queres lançar fora do teu corpo as tuas últimas gotas de sangue... - aconselhou o abade. - Ah, não acreditas em Deus, mas morres ferido por Deus!... Ah, não acreditas em Deus e no entanto Deus só pede uma prece, uma palavra, uma lágrima para perdoar!... Deus, que poderia dirigir o punhal do assassino de maneira que expirasses imediatamente... Deus concedeu-te um quarto de hora para te arrependeres... Recolhe-te, pois, em ti mesmo, desgraçado, e arrepende-te!
- Não, não me arrependo - teimou Caderousse. - Não existe Deus, não existe Providência, só existe o acaso.
- Existe uma Providência e existe um Deus - replicou Monte-Cristo -, e a prova é que enquanto estás aí deitado, desesperado, renegando Deus, eu estou aqui de pé diante de ti, rico, feliz, são e salvo, de mãos postas diante desse Deus em que tentas não acreditar, mas em que mesmo assim acreditas no fundo do coração.
- Mas então quem é o senhor? - perguntou Caderousse, fixando os seus olhos de moribundo no conde.
- Olha-me bem - disse Monte-Cristo, pegando aproximando-a da cara.
- Bom, é o abade... o abade Busoni...
Monte-Cristo tirou a peruca que o desfigurava e deixou cair os seus belos cabelos negros que emolduravam tão harmoniosamente o seu rosto pálido.