- Tolice, tolice, tolice! Que raio de generosidade, colocar-me como um alvo inerte na mira da pistola desse rapaz! Ele nunca acreditará que a minha morte é um suicídio, e no entanto isso interessa à honra da minha memória... (Não se trata de vaidade, pois não, meu Deus? Trata-se, sim, de um justo orgulho e mais nada.) Interessa à honra da minha memória que o mundo saiba que eu próprio consenti, por minha vontade, de meu livre arbítrio, em deter o meu braço já erguido para ferir, e que com esse braço, tão poderosamente armado contra os outros, me feri a mim mesmo. Isso é necessário e fá-lo-ei
E pegando numa pena tirou um papel da estante secreta da sua escrivaninha e escreveu no fundo desse papel, que não era outra coisa senão o seu testamento, feito depois da sua chegada a Paris, uma espécie de codicilo em que explicava a sua morte às pessoas menos perspicazes.
- Faço isto, meu Deus - disse com os olhos erguidos ao céu -, tanto para vossa honra como para minha. Há dez anos que me considero, ó meu Deus, o enviado da vossa vingança, e não quero que outros miseráveis como o Morcerf, não quero que um Danglars, um Villefort, e enfim que o próprio Morcerf imaginem que o acaso os desembaraçou do seu inimigo. Quero que saibam, pelo contrário, que a Providência, que já decretara a sua punição, foi corrigida unicamente pelo poder da minha vontade; que o castigo evitado neste mundo os espera no outro e que só trocaram o tempo pela eternidade.
Enquanto se debatia entre estas sombrias incertezas, sonhos maus do homem despertado pela dor, o dia veio clarear os vidros e iluminar sob as suas mãos o desbotado papel azul em que acabava de escrever a suprema justificação da Providência.
Eram cinco horas da manhã
De súbito, um ligeiro ruído chegou-lhe aos ouvidos.
Monte-Cristo julgou ter ouvido qualquer coisa como um suspiro abafado. Virou a cabeça, olhou à sua volta e não viu ninguém.
Apenas o ruído se repetiu com suficiente nitidez para que à dúvida sucedesse a certeza.
Então o conde levantou-se, abriu suavemente a porta da sala e viu numa poltrona, com os braços pendentes e o belo rosto pálido inclinado para trás, a jovem Haydée, que se colocara atravessada na porta para que ele não pudesse sair sem a ver, mas a quem o sono, tão poderoso contra a juventude, surpreendera depois da fadiga de tão longa vigília.
O ruído que a porta fez ao abrir-se não despertou Haydée.
Monte-Cristo olhou-a com um olhar cheio de ternura e remorso.