Numa reviravolta muito natural, o digno armador que dissemos pertencer ao Partido Popular encontrou-se por sua vez nesse momento, não diremos todo-poderoso, porque o Sr. Morrel era homem prudente e um bocadinho tímido, com todos aqueles que acumularam uma lenta e laboriosa fortuna comercial, mas em condições, por mais excedido que fosse pelos zelosos bonapartistas que o apodavam de moderado, em condições, dizia, de erguer a voz para fazer ouvir uma reclamação. Essa reclamação, como facilmente se adivinha, referia-se a Dantès.
Villefort ficara de pé apesar da queda do seu superior, e o seu casamento, embora continuasse decidido, fora no entanto adiado para tempos mais propícios. Se o imperador conservasse o trono, glérard precisaria doutra aliança, e o pai encarregar-se-ia de lha arranjar; se segunda restauração reconduzisse Luís XVIII aFrança, a influência do Sr. de Saint-Méran duplicaria, assim como a dele, e a união tornava-se mais vantajosa do que nunca.
O substituto do procurador régio era portanto momentaneamente o primeiro magistrado de Marselha quando uma manhã a sua porta se abriu e lhe anunciaram o Sr. Morrel.
Qualquer outro apressar-se-ia a ir ao encontro do armador e com essa solicitude deixaria transparecer a sua fraqueza. Mas Villefort era um homem superior que possuía, senão a prática, pelo menos o instinto de todas as coisas. Mandou-o, pois, esperar na antecâmara, como faria no tempo da Restauração, embora não estivesse a atender ninguém, mas pela simples razão de que era hábito um substituto do procurador régio fazer esperar na antecâmara. Depois, passado um quarto de hora, que empregou a ler dois ou três jornais de tendências diferentes, mandou introduzir o armador.
O Sr. Morrel esperava encontrar Villefort abatido; encontrou-o como o encontrara seis semanas antes, isto é, calmo, firme e cheio de fria polidez, a mais intransponível de todas as barreiras que separam o homem educado do homem vulgar.
Entrara no gabinete de Villefort convencido de que o magistrado tremia ao vê-lo, e era ele, muito pelo contrário, que se encontrava trémulo e impressionado diante daquela personagem interrogadora que o esperava com o cotovelo apoiado na secretária.
Parou à porta. Villefort olhou-o como se tivesse certa dificuldade em o reconhecer. Por fim, depois de alguns segundos de exame e silêncio, durante os quais o digno armador virou e revirou o chapéu nas mãos, Villefort disse:
- O Sr. Morrel, creio?
- Sim, senhor, eu próprio - respondeu o armador.
- Aproxime-se - continuou o magistrado, fazendo com a mão um gesto protector - e diga-me a que circunstância devo a honra da sua visita.
- Não adivinha, senhor? - perguntou Morrel.