A Queda de um Anjo - Cap. 22: Capítulo 22 Pág. 119 / 207

Bem que tal acto não implicasse delito, nem afrontasse os bons costumes, Calisto, apertado no trânsito difícil das índoles que se passam do comportamento austero e cativo às liberdades e solturas do vício, olhava com saudade o seu passado, as suas alegrias puras; e, mais que tudo, àquela hora, como o frio lhe cortava as orelhas, lembrou-se da quentura e aconchego do leito nupcial.

E como esta visão honesta, para mais o pungir, havia de ser encarecida com uma imagem de mulher leal e imaculada, Calisto viu D. Teodora de touca, naquele dormir plácido de quem adormeceu com a alma quieta e intemerata. Não bastava a touca, tão pudica quanto higiénica, a penitenciá-lo com remordentes saudades; viu-lhe também o lenço de três pontas de algodão azul com que ela costumava resguardar os ombros, antes de subir as quatro escadinhas que conduziam ao alteroso leito de pau-santo.

Se visões análogas, alguma vez, puseram guerra ao demónio tentador dos maridos infiéis e o venceram, desta feita não se logra a sã virtude do triunfo.

É que as toucas e lencinhos pudibundos, sobre não serem enfeites mui sedutores, algumas vezes tornam a virtude rançosa e tão-somente boa para adubar palestras de avós com as netas casadoiras. Este mal deve-se às artes da estatuária, artes em que a imaginativa não põe nada seu, porque tudo é copiado da natureza nua, ou quase nua. Nem sequer as Níobes, as Lucrécias, e Penélopes o buril respeita.





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