E Caderousse baixou a cabeça, com todos os sinais de verdadeiro arrependimento.
- Bem, senhor - disse o abade -, falou com franqueza. Quem se acusa assim, merece perdão.
- Infelizmente - observou Caderousse -, Edmond morreu e não me perdoou!
- Por ignorância... - atalhou o abade.
- Mas agora talvez saiba - acrescentou Caderousse. - Dizem que os mortos sabem tudo.
Fez-se um instante de silêncio. O abade levantara-se e passeava pensativo. Voltou para o seu lugar e sentou-se.
- Já se me referiu duas ou três vezes a um tal Sr. Morrel.
Quem é esse homem? - perguntou.
- Era o armador do Pharaon, o patrão de Dantès.
- E que papel teve esse homem em todo esse triste caso? - perguntou o abade.
- O papel de um homem honesto, corajoso e amigo, senhor.
Intercedeu vinte vezes por Edmond. Quando o imperador regressou, escreveu, suplicou e ameaçou, de tal forma que na II Restauração o perseguiram encarniçadamente como bonapartista. Dez vezes, como já lhe disse, foi a casa do Tio Dantès; para o retirar de lá, e ainda na véspera da sua morte, como também já lhe disse, deixou em cima da chaminé uma bolsa com a qual se pagaram as dívidas do pobre homem e se fez face ao seu funeral. Assim, o infeliz velho pôde morrer ao menos como vivera, sem prejudicar ninguém. Sou eu que tenho a bolsa, uma grande bolsa de rede encarnada.
- E esse Sr. Morrel ainda é vivo? - perguntou o abade.
- É - respondeu Caderousse.
- Nesse caso - prosseguiu o abade -, deve ser um homem abençoado por Deus, rico... feliz...
Caderousse sorriu amargamente.
- Sim, feliz como eu - redarguiu.
- O Sr. Morrel deveria ser feliz! - exclamou o abade.
- Está quase na miséria, senhor, e, pior do que isso, quase desonrado.
- Como assim?
- Sim - prosseguiu Caderousse -, é como lhe digo. Depois de vinte e cinco anos de trabalho; depois de adquirir a mais respeitável reputação na praça de Marselha, o Sr. Morrel está completamente arruinado. Perdeu cinco navios em dois anos, passou por três falências terríveis e a sua única esperança cifra-se apenas nesse mesmo Pharaon que comandava o pobre Dantès e que deve regressar da índia com um carregamento de cochonilha e índigo. Se esse navio naufragar como os outros, estará perdido.
- E esse infeliz tem mulher e filhos? - quis saber o abade.
- Tem uma mulher que no meio de tudo aquilo se comporta como uma santa, uma filha que ia casar com o homem que amava, mas cuja família já não o quer deixar desposar uma rapariga arruinada, e também um filho que é tenente do Exército. Mas. como deve calcular, tudo isto aumenta a sua dor, em vez de a mitigar. Pobre e digno homem! Se não tivesse ninguém, daria um tiro nos miolos e pronto.
- Que coisa horrível! - murmurou o padre.