Sozinho e com todos os movimentos livres, o homem tirou então de uma ampla algibeira qualquer coisa que o conde não conseguiu distinguir, pousou essa qualquer coisa em cima da mesinha de centro e depois foi direito à secretária, apalpou o sítio da fechadura e verificou que, contra a sua expectativa, a chave não estava lá.
Mas o cortador de vidros era homem precavido e previra tudo. O conde não tardou a ouvir o toque de ferro contra ferro que produz, quando o agitam, um molho de chaves toscas, dessas que trazem os serralheiros quando os mandam chamar para abrir uma porta e às quais os ladrões chamam «rouxinóis», sem dúvida devido ao prazer que sentem ao ouvir o seu «canto» nocturno quando rangem na fechadura.
- Ah, ah! - murmurou Monte-Cristo, com um sorriso decepcionado. - É apenas um ladrão.
Mas o homem, no escuro, não podia escolher o instrumento conveniente. Recorreu então ao objecto que deixara em cima da mesinha de centro. Fez funcionar um mecanismo e imediatamente uma luz pálida, mas suficientemente viva para que se pudesse ver, envolveu no seu reflexo dourado as mãos e a cara do homem.
- Olha, é... - disse de súbito Monte-Cristo, recuando com expressão de surpresa.
Ali levantou o machado.
- Não te mexas - disse-lhe Monte-Cristo em voz baixa - e deixa lá o machado; não precisamos de armas aqui.
Depois acrescentou algumas palavras baixando ainda mais a voz, porque a exclamação, por mais fraca que fosse, que a surpresa arrancara ao conde, bastara para fazer estremecer o homem, que ficara na atitude do amolador antigo. Era uma ordem que o conde acabava de dar, pois Ali afastou-se imediatamente em bicos de pés e tirou da parede da alcova uma vestimenta preta e um chapéu triangular. Entretanto, Monte-Cristo despia rapidamente a sobrecasaca, o colete e a camisa. Graças ao raio de luz que se infiltrava pela fresta do painel, poder-se-ia reconhecer no peito do conde uma dessas flexíveis e finas cotas de malha de aço doutros tempos, a última das quais, numa França onde já se não temiam os punhais, fora talvez usada pelo rei Luís XVI, que receava ser ferido no peito à navalha e acabara por ser decapitado pela guilhotina.
Aquela túnica não tardou a desaparecer debaixo de uma comprida sotaina, tal como os cabelos do conde debaixo de uma peruca tonsurada. O chapéu triangular, colocado por cima da peruca, acabou de transformar o conde em abade.