D. Beatriz pôs as mãos convulsas nos olhos quando leu tu na primeira linha, tu a primeira sílaba da carta, uma entrada assim suja e escandalosa numa missiva de caderno numerado de uma a dez páginas! E não leu mais do que aquele tu, porque em seguida apanhou-lhe o flato as potências da alma, e ela ficou a escabujar tão-somente com a potência de braços e pernas.
Ângela acudiu; Vitorina, aquela criada que o leitor já conhece, lá estava, e, nas mãos desta, a carta.
- Veja isto, menina, veja isto! - murmurou Vitorina. - Tanto lhe pedi que não lhe escrevesse...
Ângela sumiu a carta no seio, e tomou nos braços a tia. Chamou-a, beijou-a, pediu-lhe perdão, desbulhou-se em lágrimas, e deu graças a Deus quando a velha mandou fazer uma infusão de erva cidreira para aplacar a tempestade dos nervos.
Depois do que D. Beatriz obrigou a sobrinha a contar-lhe pelo miúdo a origem da sua correspondência com o irmão da costureira. Via-se a menina enleada para referir o mais singelo da história, que era a origem; mas a velha insistia em perguntar:
- Como foi o princípio disso?
- O princípio... foi... foi... eu vê-lo... - respondeu Ângela muito apertada.
Este começar a história dum primeiro e talvez eterno amor tem a sublimidade simples da origem do Universo, referida por Moisés: “No princípio era o Verbo”; com a diferença que o principiar de Ângela entende-se melhor.
- Então tu... - objetou a tia entre irônica e severa - viste-o, olhaste para ele, e mais nada... ficaste apaixonada!... Com efeito!... Eu ainda não me infirmei bem na cara desse sarrafaçal; mas, pela ideia que tenho, ele tem uma figura muito reles! Tu não sabias - continuou D. Beatriz, espiritando-se com uma pitada de vinagrinho - não sabias que ele é irmão da Joana, e cunhado do Zé tendeiro? E que o pai dele era sacristão da Senhora da Agonia, e que a mãe trabalhava com os bilros? Sabias isto?
- Sabia.