XIX - Amor-próprio Recebeu Joana a Segunda carta de seu irmão. A prosperidade afagava-o no Rio de Janeiro. Feliz numa operação de catarata, e louvado nos periódicos, fez soar o seu nome nas capitais das províncias, de onde concorriam os enfermos a consultá-lo. As remunerações eram liberalíssimas, por maneira que, segundo a parcimónia de sua ambição, poderia, dizia ele, retirar-se com sobejos recursos para viver em Portugal sem clínica. Não transparecia da carta cintila de contentamento, senão antes muitas e tristes saudades da irmã e do seu gabinete de meditação. O período último da carta rezava assim:
“Li há dias no Jornal do Comércio, que tinha chegado ao Rio o português Hermenegildo Fialho, que é ou era dono da barca em que vim. Nunca o tinha visto; mas entendi que devia procurá-lo, porque era dele o primeiro dinheiro que ganhei pela ciência, e o com que te estás sustentando. Tinha-se hospedado em casa do seu correspondente. Sem eu nada lhe perguntar, me disse que deixara Portugal para sempre, por causa de sérios desgostos que lhe dera a mulher. Ouvi-o em silêncio, e tive pena do homem, que me pareceu consternado, posto que nédio e pouco azado para mover à piedade. Mas a minha compaixão trocou-se em riso quando ontem o vi em Petrópolis com uma espadaúda mulher que denunciava pertencer à raça forte das nossas mulheres do Minho. Eu ia-me desviando dele, pensando que o embaraçava; mas ele mesmo me chamou para me oferecer de almoçar com tal instância que não pude safar-me. Não me atrevia a perguntar quem era a nossa comensal. Como leste o D. Quixote, imaginarás que eu, comparando os personagens do romance com os do almoço, me figurei que Sancho tinha roubado Maritornes ao cavaleiro da triste figura. Realmente, Hermenegildo, como Sancho, excedeu a imaginativa de Cervantes”.