XXV - O Cego Os olhos do general Noronha cegaram inteiramente. Os especialistas de Paris tinham capitulado de catarata negra a próxima cegueira, muito semelhante nos sintomas à gota serena.
Declinava para os setenta anos o inconsolável cego. Queria voltar a Paris, esperançado na operação; mas escasseavam-lhe forças. A velhice deste homem disciplinado por pesares de toda a espécie, deste o terrível só até ao excruciar do remorso, causava a um tempo compaixão e medo. A caquexia lenta mirrara-o até lhe secar a pele sobre a aridez dos ossos; e os glóbulos dos olhos guinavam pardacentos nas órbitas descarnadas à procura dum raio de luz.
Os parentes e amigos que ele havia repelido não o procuravam nos derradeiros anos, porque sabiam que o testamento estava feito. Os legatários, entregues à sáfara da sua lavoura, nem sequer averiguavam se o senhor do Paço de Gondar era morto ou vivo. Ninguém portanto o visitava. O velho cheirava a cadáver, e o lastimar-se dum cego exasperado afugentaria até a comiseração dos herdeiros.
O mordomo, João Pedro, é que, dia e noite, lhe dava o braço ou vigiava o ansiado dormitar. Chorava, quando o via de súbito parar, voltados para o céu os olhos, e clamar: “Meu Deus, meu Deus, dai-me a minha vista, ou matai-me!”
E, em uma dessas apóstrofes à Providência divina, que lhe visitara alfim a escuríssima cegueira de alma e corpo, João Pedro disse:
- Fidalgo, vossa excelência, se quer que Deus o escute, siga a lei cristã: tenha pena de sua filha, perdoe-lhe pelo divino amor de Deus. Pode ser que depois a misericórdia de Jesus Cristo se compadeça de vossa excelência.
- E quem te disse a ti que ela era minha filha? - repetiu o cego a pergunta feita um ano antes.
- Disse-mo vossa excelência, quando ela o visitava; muitas vezes me escreveu lá para o Paço: “Manda-me boa fruta que tenho cá minha filha”.