XI - Sonhos e esperanças Como foi que a vigilância dos dois anjos-custódios de Ângela deixaram passar a primeira carta?
Denunciaremos à moral pública certa fragilidade do estudante.
O escrever-lhe não constava do programa; nem isso era mister para homem que se abastava com o ideal encontro no silêncio das noites estreladas. E, de feito, ele não escrevia cartas à imitação de umas que o vulgo mais seleto escreve, e suja e profana nas mãos encodeadas dum aguadeiro.
Francisco, no calado da noite, voltava contemplativo e vagaroso da costa marítima, ou descia dos pinhais cerrados de Agra. Aquelas noites estivas da gentilíssima Niana, que se reclina à beira-mar, sob um pavilhão de verdura, e se remira no espelho do seu Lima, são noites para poetas, e poetas se fazem ali súbito inflamados por tantas maravilhas da natureza, raro cumuladas num só paraíso. Debaixo de céu tão inspirativo, e terra tão espontânea de murmúrios, de músicas, de perfumes, de silêncios que se entendem e ouvem no coração, ali, onde não se faz mister a forma para adorar a ideia, é que o poeta de Ângela adorava ideia e forma também, apesar dos seus incorpóreos devaneamentos.
Na volta da montanha ou das ribas do mar, continuava os sonhos, à lâmpada do seu quarto, e escrevia-os, justamente num caderno com frontispício que dizia SONHOS.
O merceeiro viu, uma vez, a costaneira com o estranho título; abriu-a, leu duas linhas, fechou-a como os filólogos modernos em consciência deviam fechar os códices coptas, e disse à esposa:
- Teu irmão está ali, está doido. Escreve de dia os sonhos que tem de noite. Pobre moço!
Joana foi ver também. Leu e entendeu muito pela rama.
Aconteceu perguntar D. Ângela à sua mestra de bordar o que fazia o irmão, quando não lia.