Um conhecido do agonizante levado de escrúpulos, entrou-lhe ao quarto com o prior da freguesia, homem de respeitáveis cãs, e, na serenidade límpida do rosto, um como mensageiro e núncio da misericórdia divina.
Hermenegildo encarou nele com assombro, e regougou a trancos de voz cavernosa:
- Vá-se embora, que eu não morro desta vez.
- Assim o permitirá Deus - respondeu o sacerdote com grave compostura - mas os benefícios dos sacramentos não utilizam somente aos que vão à presença do Senhor.
- Não me conte histórias - tartamudeou o brasileiro, rolando-se de modo que lhe virou as costas.
- Meu irmão - tornou o sacerdote de Jesus - veja se tem na sua alma ofensas a perdoar, ou ódios de que peça perdão. Quando Deus for servido chamá-lo a contas, a sua alma não poderá voltar as costas à face do supremo juiz.
- Não me matem! - rugiu Hermenegildo, barafustando.
O padre quedou-se a contemplar de braços cruzados e o coração em Deus aquele espetáculo, suplicando graça para rebeldia tão estranha na suprema hora.
A graça divina esquivou-se. Contra a benigna teologia de boníssimos casuístas, vivo persuadido que Lúcifer estimaria que certas almas, à última hora, limpas pela contrição, se guindassem à glória, a fim de lhe não sujarem o inferno.
O sacerdote retirou-se, quando viu que a sua presença sobreafligia o doente.
Era meia-noite.
Desta hora até às cinco da manhã Hermenegildo pediu água já nos demorados paroxismos, e ninguém se abeirou do seu leito.
Cinco horas vasquejou sozinho, e, aos primeiros assomos do dia, rendeu... a alma.
Rosa, acordada pelo futuro marido, perguntou se o patrão tinha acabado.
- Acho que sim, que já não ouço nada - disse o criado, e foi chamar o primo de Atanásio para tomar conta de algumas arrobas de carne em putrefação, onde estivera uma alma “criada à imagem e semelhança de Deus”.