Ora, Coclès vira-os afastarem-se todos sem pensar sequer em averiguar o motivo da sua partida. Como dissemos, para Coclès tudo se resumia numa questão de números, e como, nos vinte anos que tinha de casa, sempre vira os pagamentos efectuarem-se pontualmente e com toda a regularidade, não admitia que essa regularidade se pudesse interromper e esses pagamentos suspender, tal como um moleiro que possui uma azenha alimentada pelas águas de uma ribeira caudalosa não admite que essa ribeira possa deixar de correr. Com efeito, até ali nada viera ainda desmentir a convicção de Coclès. No último fim de mês, os pagamentos tinham-se efectuado com rigorosa pontualidade. Coclès descobrira um erro de setenta cêntimos cometido pelo Sr. Morrel em seu prejuízo, e no mesmo dia restituíra os catorze soldos excedentes ao Sr. Morrel que, com um sorriso melancólico, os recebera e deixara cair numa gaveta quase vazia, dizendo:
- Obrigado, Coclès. Você é a pérola dos tesoureiros.
E Coclès retirara-se satisfeitíssimo, porque um elogio do Sr. Morrel, a pérola das pessoas honestas de Marselha, lisonjeava mais Coclès do que a gratificação de cinquenta escudos.
Mas depois daquele fim de mês tão vitoriosamente concluído, o Sr. Morrel passara por momentos cruéis. Para fazer face a esse fim de mês, reunira todos os seus recursos, e ele próprio, temendo que a notícia da sua penúria se espalhasse em Marselhas e o vissem recorrer a semelhantes extremos, fizera uma viagem à feira de Beaucaire para vender algumas jóias pertencentes à mulher e à filha e parte das suas pratas. Graças a esse sacrifício, tudo se passara ainda dessa vez com a maior honra para a casa Morrel. Mas a caixa ficara completamente vazia. O crédito, assustado pelos boatos que corriam, retirara-se com seu egoísmo habitual, e para fazer face aos cem mil francos a reembolsar em 15 do mês corrente ao Sr. de Boville, bem como aos outros cem mil francos vencíveis em 15 do mês seguinte, o Sr. Morrel só podia contar, na realidade, com a esperança do regresso do Pharaon, de cuja partida soubera por um navio que levantara ferro ao mesmo tempo que ele chegara a bom porto.
Mas esse navio, vindo como o Pharaon de Calcutá, já chegara havia quinze dias, ao passo que do Pharaon não havia nenhuma notícia.
Foi neste estado de coisas que no dia seguinte àquele em que fechara com o Sr. de Boville o importante negócio a que nos referimos o enviado da casa Thomson & French, de Roma, se apresentou em casa do Sr. Morrel.