«Num cueiro de fina cambraia de linho estava envolta uma criança recém-nascida. O rosto purpúreo e as mãos roxas indicavam que devia ter sucumbido a asfixia causada por ligamentos naturais enrolados à volta do pescoço. No entanto, como ainda não estava fria, hesitei em atirá-la à água que me corria aos pés. Com efeito, passado um instante, julguei notar uma leve pulsação na região do coração. Libertei-lhe o pescoço do cordão que o envolvia e, como fora enfermeiro no hospital de Bástia, fiz o que faria um médico em semelhantes circunstâncias, isto é: insuflei-lhe corajosamente ar nos pulmões, e passado um quarto de hora de esforços inauditos vi a criança respirar e ouvi um grito sair-lhe do peito.
«Soltei por minha vez um grito, mas um grito de alegria. "Deus não me amaldiçoou", disse para comigo, "pois permite-me que restitua a vida a uma criatura humana em troca da vida que tirei a outra!"
- E que fez dessa criança? - perguntou Monte-Cristo. – Era uma bagagem bastante embaraçosa para um homem que necessitava de fugir.
- Por isso não me passou sequer pela cabeça ficar com ela. Mas sabia que existia em Paris um hospício onde recebiam essas pobres crianças. Quando transpus a barreira, declarei ter achado a criança na estrada e informei-me. O cofre estava ali e era uma prova; o cueiro de cambraia indicava que a criança tinha pais ricos; o sangue que me cobria tanto podia pertencerà criança como a qualquer outro indivíduo. Não me fizeram nenhuma objecção. Indicaram-me o hospício, que ficava mesmo ao fundo da Rua do Inferno, e, depois de tomar a precaução de cortar o cueiro em dois, de maneira que uma das duas letras que o marcavam ficasse na parte que envolvia o corpo da criança, depositei o, meu fardo na roda, toquei e raspei-me a toda a velocidade. Quinze dias mais tarde estava de volta a Rogliano e dizia a Assunta: «Consola-te, minha irmã; Israel morreu, mas vinguei-o.« «Então ela pediu-me explicações destas palavras e eu contei-lhe tudo o que se passara.
«- Giovanni - disse-me Assunta -, devias ter trazido essa criança. Faríamos as vezes dos pais que perdeu, chamar-lhe-iamos Benedetto, e graças a essa boa acção Deus abençoar-nos-ia efectivamente.
«Como única resposta entreguei-lhe a metade do cueiro que guardara, a fim de poder reclamar a criança se fôssemos mais ricos.
- E com que letras estava marcado o cueiro? - perguntou Monte-Cristo.
- Com um H e um N encimados por uma fiada de pérolas de barão.
- Creio, Deus me perdoe, que se serve de termos de heráldica, Sr. Bertuccio! Onde diabo estudou essa matéria?
- Ao seu serviço, Sr. Conde, onde se aprendem todas as coisas.
- Continue. Estou com curiosidade de saber dois pormenores.
- Quais, senhor?