- Não, foi lá fora... foi... não sei bem... mas parece-me que esta recordação é inseparável de um belo sol e de uma espécie de festa religiosa... A menina tinha flores na mão, o menino corria atrás de um belo pavão, num jardim a senhora... a senhora estava debaixo de um caramanchão em forma de abóbada... Ajude-me, minha senhora. O que acabo de lhe dizer não lhe lembra nada?
- Não, na verdade - respondeu a Sr.ª de Villefort. - E no entanto parece-me, senhor, que se o tivesse encontrado em qualquer parte a sua recordação teria ficado gravada na minha memória.
- Talvez o Sr. Conde nos tenha visto em Itália - sugeriu timidamente Valentine.
- Com efeito, na Itália... é possível - admitiu Monte-Cristo.
- Já viajou pela Itália, menina?
- Minha madrasta e eu estivemos lá dois anos. Os médicos temiam pelos meus pulmões e recomendaram-me o ar de Nápoles. Passámos por Bolonha, Perúsia e Roma.
- É verdade, menina! - exclamou Monte-Cristo, como se aquela simples indicação bastasse para fixar todas as suas recordações.
- Foi em Perúsia, no dia da festa do Corpo de Deus, no jardim da estalagem da posta, que o acaso nos reuniu: a senhora, a menina, o seu filho e eu. Recordo-me que foi aí que tive a honra de os ver.
- Lembro-me perfeitamente de Perúsia, senhor, e da estalagem da posta, e da festa a que se refere - disse a Sr.ª de Villefort -, mas, por mais que interrogue as minhas recordações, a minha memória deixa-me envergonhada, pois não me lembro de ter tido a honra de o ver.
- É estranho, mas eu também não - disse Valentine, levantando os belos olhos para Monte-Cristo.
- Lembro-me eu! - exclamou Edouard.
- Vou ajudá-la, minha senhora - prosseguiu o conde. - O dia estivera escaldante e a senhora esperava cavalos que não chegavam devido à solenidade. A menina afastou-se para a parte mais densa do jardim e o seu filho desapareceu correndo atrás da ave.
- Apanhei-o, mãezinha, bem sabes, e arranquei-lhe três penas da cauda - declarou Edouard.
- A senhora ficou debaixo da abóbada do caramanchão... Não se lembra de, enquanto esteve sentada num banco de pedra e de, como eu disse, enquanto Mademoiselle de Villefort e o seu filho estiveram ausentes, ter conversado durante bastante tempo com alguém?
- Sim, realmente, lembro... - admitiu a jovem senhora, corando.
-Lembro-me de conversar com um homem envolto numa grande capa de lã... com um médico, creio.
- Exactamente minha senhora. Esse homem era eu. Havia quinze dias que estava hospedado na estalagem, curara o meu criado de quarto de uma febre e o estalajadeiro de icterícia, de modo que me olhavam como um grande médico.