»Quem sou eu? A lei. Ora a lei tem porventura olhos para ver a sua tristeza? Ouvidos para escutar a sua meiga voz? Memória para aplicar a si própria os seus delicados pensamentos? Não, minha senhora, a lei ordena, e quando a lei ordena, fere.
»Dir-me-á que sou um ser vivo e não um código; um homem e não um volume. Olhe para mim, minha senhora, olhe à minha volta: os homens trataram-me como irmão? Amaram-me? Pouparam-me? Consideraram-me? Alguém pediu compaixão para o Sr. de Villefort e houve porventura quem concedesse a esse alguém perdão para o Sr. de Villefort? Não, não, não! Feriram-no, feriram-no sempre!
»Persiste, mulher, como sereia que é, em me falar com esse olhar encantador e expressivo que me recorda que devo corar. Sim, sem dúvida, corar do que sabe e talvez, talvez de mais outra coisa.
»Mas enfim, desde que eu próprio falhei, e talvez mais profundamente do que os outros, desde esse tempo tenho sacudido as roupas dos outros em busca da úlcera, e encontrei-a, e direi mais: encontrei-a com prazer, com alegria, esse sinal da fraqueza ou da perversidade humana.
»Porque cada homem que reconhecia culpado, e cada culpado que feria, parecia-me uma prova viva, uma nova prova de que eu não era uma hedionda excepção. Infelizmente - sim, infelizmente, infelizmente! - toda a gente é má, minha senhora; provemo-lo e firamos o mau!
Villefort pronunciou estas últimas palavras com raiva febril, que dava à sua linguagem uma eloquência feroz.
- Mas - prosseguiu a Sr.ª Danglars, procurando tentar um último esforço - o senhor não diz que esse rapaz é um vagabundo, um órfão abandonado por todos?
- Tanto pior, tanto pior, ou antes, tanto melhor. A Providência fê-lo assim para ninguém ter de chorar por ele.
- Isso é encarniçar-se contra um fraco, senhor.
- Um fraco que assassina!
- A sua desonra recairia sobre a minha casa.
- Não tenho eu a morte na minha!
- Oh, senhor, da sua parte não há piedade para os outros! - exclamou a baronesa. - Pois bem, sou eu quem lho diz, também não haverá piedade para si!
- Seja! - redarguiu Villefort, erguendo, num gesto de ameaça, o braço do céu.
- Adie ao menos a causa desse desventurado, se ele for preso, para o próximo período judicial. Isso dar-nos-á seis meses para que o caso seja esquecido.
- Não - recusou Villefort. - Ainda tenho cinco dias; a instrução está concluída, e cinco dias é mais tempo do que necessito. Aliás, não compreende, minha senhora, que também necessito de esquecer? Quando trabalho, e trabalho dia e noite, quando trabalho há momentos em que me esqueço, e quando me esqueço sou feliz como são os mortos. Mas mesmo Assim isso é ainda preferível a sofrer.