II – PROJECTO DE UM CRIMEOs dois parisienses, que atravessavam a rotunda, apresentavam-se de tal sorte que dir-se-iam típicas figuras para um pintor.
Um deles, o que parecia subalterno, trazia botas de canhão esbeiçado, o que permitia que se lhe vissem as canelas escanifradas e as meias de seda, sarapintadas, de um asseio duvidoso. O calção, de bombazina, cor de ameixa, com botões de metal, ficava-lhe a dançar nas pernas, tão largo era; o corpo parecia folgado lá dentro, e as pregas, surradas, deixavam perceber, pela sua disposição, tratar-se de homem de gabinete. O colete de piqué, todo ele bordado em relevo, aberto, abotoado apenas por um botão na proeminência do abdômen, dava a esta personagem um ar tanto mais desleixado quanto é certo os seus cabelos pretos, frisados em saca-rolhas, lhe escondiam a testa e lhe pendiam ao longo das faces. Duas correntes de relógio, de aço, descaíam-lhe sobre o calção. Na camisa tinha uni, alfinete com um camafeu azul e branco.
A casaca, cor de canela, recomendava-se ao caricaturista por umas longas abas, as quais, vistas pela retaguarda, se pareciam com bacalhau aliás o nome que se lhes dava. A moda das casacas de rabo-de-bacalhau durou dez anos, quase o tempo que durou o império napoleónico,
A gravata, solta, e de grandes e abundantes pregas, permitia que o indivíduo enterrasse dentro a cara até ao nariz. O rosto borbulhento, a penca comprida e grossa, cor de tijolo, as maçãs do rosto animadas, a boca desdentada, mas ameaçadora e gulosa, as orelhas com grandes brincos de oiro, a testa baixa, todos estes pormenores, que parecem grotescos, tornavam-se terríveis, graças a dois olhinhos abertos e rasgados colho os dos porcos, e de uma implacável avidez, de uma crueldade escarninha e quase jovial.