Perante esta declaração quase brutal, Morrel empalideceu horrivelmente.
- Senhor - redarguiu -, até agora, e há mais de vinte e quatro anos que recebi esta casa das mãos do meu pai, que ele próprio geriu durante trinta e cinco anos, até agora nenhuma letra assinada por Morrel & Filhos foi apresentada à cobrança sem ser paga.
- Sim, sei isso - respondeu o inglês. - Mas fale francamente, de homem de honra para homem de honra: pagaria estas com a mesma pontualidade? Morrel estremeceu e olhou aquele que lhe falava, assim, com mais convicção do que ele.
- As perguntas feitas com essa franqueza deve-se dar uma resposta franca. Sim, senhor, pagarei se, como espero, o meu navio chegar a bom porto, pois a sua chegada proporcionar-me-á o crédito que os sucessivos acidentes de que tenho sido vítima me privaram. Mas se por desgraça o Pharaon, o último recurso com que conto, não chegar...
As lágrimas subiram aos olhos do pobre armador.
- Se esse último recurso lhe faltasse?... - insistiu o seu interlocutor.
- Bom - continuou Morrel -, é cruel dizê-lo, senhor... mas como já estou habituado à desgraça, é mister que me habitue também à vergonha. Nesse caso, creio que seria obrigado a suspender os meus pagamentos.
- Não tem amigos que o possam ajudar nessa circunstância? Morrel sorriu tristemente.
- Nos negócios não há amigos, senhor, bem sabe, há apenas correspondentes.
- É verdade - murmurou o inglês. - Portanto, é essa a sua única esperança?
- A única.
- A derradeira?
- A derradeira.
- De forma que se essa esperança falhar...
- Estarei perdido, senhor, completamente perdido.
- Quando vinha para aqui estava um navio a entrar no porto.
- Bem sei, senhor. Um rapaz que permaneceu fiel à minha pouca sorte passa parte do seu tempo num mirante situado no cimo da casa, na esperança de me vir anunciar em primeira mão uma boa notícia. Soube por ele da entrada desse navio.
- E não é o seu?
- Não, é um navio bordelês, a Gironde. Também vem da índia, mas não é o meu.
- Talvez tenha avistado o pharaon e lhe traga alguma notícia.
- Confesso-lhe, senhor, que receio quase tanto ter notícias do meu três mastros como permanecer na incerteza. A incerteza ainda é esperança.
Depois, o Sr. Morrel acrescentou com voz abalada:
- Este atraso não é natural
- O Pharaon partiu de Calcutá em 5 de Fevereiro; há mais de um mês que deveria cá estar.
- Que é isto? - perguntou o inglês, apurando o ouvido. - Que significa este barulho?
- Oh, meu Deus, meu Deus! - exclamou Morrel, empalidecendo. - Que mais haverá ainda?
De facto, ouvia-se um grande barulho na escada: idas e vindas e até se ouviu um grito de dor.