O Conde de Monte Cristo - Cap. 67: No gabinete do Procurador Régio Pág. 642 / 1080

Era portanto urgente que antes de mais nada, e acontecesse o que acontecesse, fizesse desaparecer os vestígios do passado, destruísse todo e qualquer rasto material, embora na minha memória a realidade permanecesse sempre demasiado viva.

» Fora para isso que rescindira o arrendamento, fora para isso que viera, era para isso que esperava.

» Anoiteceu, mas esperei até que a noite ficasse bem escura. Não tinha luz no quarto, onde as rajadas de vento faziam tremer os reposteiros atrás dos quais julgava sempre ver algum espião emboscado. De vez em quando estremecia e parecia-me ouvir atrás de mim, na cama, os seus gemidos, minha senhora, mas não ousava voltar-me. O meu coração pulsava no meio do silêncio e sentia-o bater tão violentamente que cheguei a pensar que o meu ferimento se reabrisse. Por fim, ouvi extinguirem-se um após outro todos os diversos ruídos do campo. Compreendi que já não tinha nada a temer, que não poderia ser visto nem ouvido, e decidi-me a descer.

» Ouça, Hermine, considero-me tão corajoso como qualquer outro homem, mas quando retirei do peito a chavinha da escada, aquela chavinha a que os dois tanto queríamos e que a senhora mandara prender a uma argola de ouro; quando abri a porta e vi através das janelas uma lua pálida lançar sobre os degraus em espiral uma comprida faixa de luz branca semelhante a um fantasma, agarrei-me à parede e estive prestes a gritar. Tinha a sensação de enlouquecer.

» Por fim consegui dominar-me e desci a escada degrau a degrau. A única coisa que não conseguira vencer era uma estranha tremura nos joelhos. Agarrei-me ao corrimão; se o largasse, por um instante que fosse, precipitar-me-ia por ali abaixo.

» Cheguei à porta do jardim. Da parte de fora, encostada à parede, estava uma enxada. Munira-me de uma lanterna de furta-fogo. No meio do relvado parei para a acender e depois continuei o meu caminho.

» Novembro estava prestes a terminar, toda a verdura do jardim desaparecera, as árvores não eram mais do que esqueletos de compridos braços descarnados e as folhas mortas rangiam com o saibro debaixo dos meus pés.

» O terror apertava-me tão fortemente o coração que ao aproximar-se do maciço tirei uma pistola da algibeira e destravei-a. Julgava sempre ver aparecer através dos ramos a cara do corso.

» Iluminei o maciço com a minha lanterna de furta-fogo; estava vazio. Olhei em redor de mim e verifiquei que me encontrava sozinho. Nenhum ruído perturbava o silêncio da noite, excepto o canto de uma coruja, que emitia o seu pio agudo e lúgubre como um chamamento aos fantasmas da noite.

» Pendurei a lanterna num ramo em forma de forquilha, em que já reparara um ano antes, no próprio local onde me detivera para abrir a cova.





Os capítulos deste livro

Marselha - A Chegada 1 O pai e o filho 8 Os Catalães 14 A Conspiração 23 O banquete de noivado 28 O substituto do Procurador Régio 38 O interrogatório 47 O Castelo de If 57 A festa de noivado 66 Os Cem Dias 89 O número 34 e o número 27 106 Um sábio italiano 120 A cela do abade 128 O Tesouro 143 O terceiro ataque 153 O cemitério do Castelo de If 162 A Ilha de Tiboulen 167 Os contrabandistas 178 A ilha de Monte-Cristo 185 Deslumbramento 192 O desconhecido 200 A Estalagem da Ponte do Gard 206 O relato 217 Os registos das prisões 228 Acasa Morrel 233 O 5 de Stembro 244 Itália - Simbad, o marinheiro 257 Despertar 278 Bandidos Romanos 283 Aparição 309 A Mazzolata 327 O Carnaval de Roma 340 As Catacumbas de São Sebastião 356 O encontro 369 Os convivas 375 O almoço 392 A apresentação 403 O Sr. Bertuccio 415 A Casa de Auteuil 419 A vendetta 425 A chuva de sangue 444 O crédito ilimitado 454 A parelha pigarça 464 Ideologia 474 Haydée 484 A família Morrel 488 Píramo e Tisbe 496 Toxicologia 505 Roberto, o diabo 519 A alta e a baixa 531 O major Cavalcanti 540 Andrea Cavalcanti 548 O campo de Luzerna 557 O Sr. Noirtier de Villefort 566 O testamento 573 O telégrafo 580 Meios de livrar um jardineiro dos ratos-dos-pomares que lhe comem os pêssegos 588 Os fantasmas 596 O jantar 604 O mendigo 613 Cena conjugal 620 Projetos de casamento 629 No gabinete do Procurador Régio 637 Um baile de Verão 647 As informações 653 O baile 661 O pão e o sal 668 A Sra. de Saint-Méran 672 A promessa 682 O jazigo da família Villefort 705 A ata da sessão 713 Os progressos de Cavalcanti filho 723 Haydée 732 Escrevem-nos de Janina 748 A limonada 762 A acusação 771 O quarto do padeiro reformado 776 O assalto 790 A mão de Deus 801 Beauchamp 806 A viagem 812 O julgamento 822 A provocação 834 O insulto 840 A Noite 848 O duelo 855 A mãe e o filho 865 O suicídio 871 Valentine 879 A confissão 885 O pai e a filha 895 O contrato 903 A estrada da Bélgica 912 A estalagem do sino e da garrafa 917 A lei 928 A aparição 937 Locusta 943 Valentine 948 Maximilien 953 A assinatura de Danglars 961 O Cemitério do Père-lachaise 970 A partilha 981 O covil dos leões 994 O juiz 1001 No tribunal 1009 O libelo acusatório 1014 Expiação 1021 A partida 1028 O passado 1039 Peppino 1049 A ementa de Luigi Vampa 1058 O Perdão 1064 O 5 de Outubro 1069