O Mistério da Estrada de Sintra - Cap. 28: QUINTA PARTE - AS REVELAÇÕES DE A. M. C.
CAPÍTULO I Pág. 160 / 245

Para compensar estas depressões assistia-lhe uma superioridade repugnante, inadmissível: a que procede da casta. Um berço de luxo, uma constituição delicada, um leito de penas, a infância resguardada na sombra, entre estofos, sobre tapetes, ao som de um piano, - isto basta, para que fique ridículo, miserável, desprezível ao pé dela um homem que se criou ao clarão do dia, à luz do sol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e por melodias o roncar das carvalheiras e o gemer dos pinhais!

E entre mim e ela será isto perpetuamente uma barreira.

Ela ficará sempre bela, dominativa, sedutora por natureza, instintivamente cativante, querida, amimada, estremecida, dentro da sua zona de aromas, de veludos, de cristais e de luzes!

Eu, entre a minha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a minha cama de ferro coberta de chita, ficarei sempre tenebroso e inútil, - desgraçado quando não quiser tornar-me tão ridículo, e irrisório quando tiver a vaidade de não querer ser desgraçado!…

Acendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei estudar. Impossível. As letras de um livro que tinha aberto diante de mim percorri-as com a vista pelo espaço de três ou quatro páginas, maquinalmente, sem compreender o sentido de uma só palavra. Deixei o livro e fiquei por algum tempo inerte, estupido, neutro, com a vista fixa nas orbitas ocas de uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para mim com o escancelado sarcasmo que trazem da cova os esqueletos desenterrados. Aborrecia-me a vida. Apaguei a luz, despi-me e deitei-me.

Tinham-me feito a cama nesse dia com dois desses lenções de folhos engomados, com que a minha mãe enriquecera liberalmente o meu baú de estudante. Estes lenções tinham a aspereza do linho novo e o cheiro característico do bragal da província.





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