PRIMEIRA PARTE - EXPOSIÇÃO DO DOUTOR
CAPÍTULO I Sr. redator do Diário de Noticias
Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substancia, pelo menos, do que vou expor.
Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou por mim torna-se importantíssima como chave única para o desenlace de um drama que suponho terrível com quanto não conheça dele senão um só ato e ignore inteiramente quais foram as cenas precedentes e quais tenham de ser as últimas.
Há três dias que eu vinha dos subúrbios de Sintra em companhia de F…, um amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.
Montávamos dois cavalos que F… tem na sua quinta e que deviam ser reconduzidos a Sintra por um criado que viera na véspera para Lisboa.
Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A melancolia do lugar e da hora tinha-se-nos comunicado, e vínhamos silenciosos, abstraídos na paisagem, caminhando a passo.
A cerca de talvez de meia distância do caminho entre S. Pedro e o Cacem, num ponto a que não sei o nome, porque tenho transitado pouco naquela estrada, sitio deserto como todo o caminho através da charneca, estava parada uma carruagem.
Era um coupé pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma parelha cor de castanha.
O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos cavalos.
Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte da estrada por onde tínhamos de passar, e pareciam ocupados em examinar atentamente o jogo da carruagem.