Calafrio - Cap. 4: Capítulo 4 Pág. 27 / 164

Aqueles dois possuíam o viço da saúde e da felicidade; e, no entanto, como se tivesse a meu cargo um par de alta estirpe, uma espécie de príncipes de sangue, indivíduos para quem, no final, tudo acabaria por correr bem, já que por certo haveria quem disso se encarregasse, o futuro para eles só poderia vir a ser qualquer coisa de romântico, uma espécie de extensão aristocrática do jardim e do parque. Claro que pode ter sido aquilo que sucedeu a seguir que transformou esta época numa fase em que a calma e o encanto constituíram a tónica dominante — aquele período deveras breve em que algo se condensa ou recolhe sobre si mesmo. E a mudança que estava prestes a ocorrer assemelhou-se bastante ao ataque de um animal selvagem.

Nas primeiras semanas, os dias foram longos e muitas vezes proporcionaram-me aquilo que apelidei de «a minha hora», ou seja, a hora em que, depois de deitar os meus pupilos, podia gozar de um pouco de privacidade antes de eu mesma me recolher. Por muito que gostasse da companhia dos garotos, esta era a hora do dia que eu mais apreciava, o que ficava a dever-se ao facto de, à medida que a luz esmorecia — ou, melhor dizendo, o dia hesitava em ceder lugar à noite e as aves deixavam escapar os seus últimos ir nos. os quais, vindos de entre as velhas árvores, se recortavam contra um céu alaranjado — eu poder passear por ali e desfrutar, diria que quase com um sentimento de posse, de toda a beleza e dignidade do lugar. Sem dúvida que, nesses momentos, nada me dava maior prazer que sentir-me tranquila, e, de certa forma, era como se por todo o bom senso por mim demonstrado, bem como a discrição e a compostura que me caracterizavam, eu estivesse a agradar — como se ele alguma vez pensasse nisso! — à pessoa a cujas pressões acabara por ceder. Eu estava a fazer aquilo que ele desejara e me pedira, e o facto de, afinal, poder cumprir a minha parte do acordo causava-me uma alegria muito superior àquela que eu já alguma vez esperara. Resumindo, creio que me considerava a mim mesma uma mulher excepcional e consolava-me a esperança de que tal pudesse surgir como um dado adquirido aos olhos de todos. Bom, a verdade é que eu necessitava mesmo de ser excepcional para poder fazer frente às coisas excepcionais que, passado pouco tempo, começaram a dar os primeiros sinais de vida.





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