No dia seguinte, depois das aulas, Mrs. Grose encontrou um momento livre para me perguntar em voz baixa:
— Já acabou a carta, menina?
— Sim, já acabei. — Todavia, escusei-me a acrescentar (pelo menos nesse momento) que a carta, selada e já com o remetente escrito no sobrescrito, continuava no meu bolso. Teria tempo suficiente para a enviar antes de o mensageiro partir pata a aldeia. Entretanto, no que respeitava aos meus alunos, sem dúvida que aquela fora uma manhã brilhante e exemplar. Era como se ambos se mostrassem empenhados em passar uma esponja sobre qualquer fricção recentemente ocorrida. Executaram na perfeição feitos aritméticos que ultrapassavam em muito os meus magros conhecimentos, e, revelando um humor excelente, teceram uma série de comentários divertidos a respeito da geografia e da história. Era notável a forma como Miles parecia querer pôr em evidência o ascendente que exercia sobre mim. Na minha memória, esta criança continua a viver num cenário de beleza e miséria cuja existência é impossível de traduzir por palavras. Havia uma distinção muito própria em todos os seus impulsos. Nunca uma criatura de tão pouca idade se comportara perante olhos desprevenidos de um modo tão franco, tão hábil, tão cavalheiresco. Via-me obrigada constantemente a manter-me alerta contra a tentação de o contemplar, controlar os meus suspiros quando mergulhava no enigma dos motivos da sua expulsão. Digamos que, por intermédio do negro prodígio que eu já conhecia, a sua mente fora confrontada com a visão de todo o mal, e o que havia de justo em mim estava magoado com a possibilidade de esse mal ter florescido em actos.
De facto, nunca Miles agiu de forma tão cavalheiresca como quando, nesse mesmo dia horroroso, depois do almoço, o garoto se aproximou de mim e me perguntou se não gostaria de o ouvir tocar piano durante uma meia hora. David, ao convidar Saul para um pequeno recital, não se revelou possuidor de um melhor sentido de oportunidade.