Por outro lado, por viver constantemente na meia-luz e na escuridão, os seus olhos tinham adquirido a singular faculdade de distinguir os objectos durante a noite, como os da hiena e os do lobo.
Edmond sorriu ao ver-se: era impossível que o seu melhor amigo, se ainda lhe restasse um amigo, o reconhecesse. Nem ele se reconhecia a si próprio.
O patrão da Jeune-Amélie, empenhadíssimo em conservar entre os seus um homem do valor de Edmond, oferecera-lhe alguns adiantamentos sobre a sua parte nos lucros futuros, e Edmond aceitara. O seu primeiro cuidado, assim que saiu do barbeiro que acabava de proceder à sua primeira metamorfose, foi pois entrar numa loja e comprar um fato completo de marinheiro. Tal fato, como se sabe, é muito simples: compõe-se de calças brancas, camisa às riscas e barrete frígio.
Foi assim vestido, depois de restituir a Jacopo a camisa e as calças que lhe emprestara, que Edmond reapareceu diante do patrão da Jeune-Amélie, a quem foi obrigado a repetir a sua história. O patrão não queria reconhecer naquele marinheiro elegante o homem de barba espessa, cabelo coberto de algas e corpo a escorrer água do mar que recolhera nu e moribundo na coberta do seu navio.
Entusiasmado com o seu bom aspecto, renovou a Dantès as suas propostas de contratação. Mas Dantès, que tinha os seus projectos, só as aceitou por três meses.
A tripulação da Jeune-Amélie era muito activa e estava submetida às ordens de um patrão que adquirira o hábito de não perder tempo. Por isso, decorridos apenas oito dias desde a sua chegada a Liorne, os flancos arredondados do navio encontravam-se cheios de musselinas estampadas, algodões proibidos, pólvora inglesa e tabaco que a régie do Estado se «esquecera» de selar. Tratava-se de fazer sair tudo isso de Liorne, porto franco, e de o desembarcar nas costas da Córsega, donde certos especuladores se encarregariam de fazer passar o carregamento para França.
Partiram. Edmond cruzou de novo aquele mar azulino, primeiro horizonte da sua juventude, que tantas vezes revira em sonhos na prisão. Deixaram à direita a Górgona e à esquerda Pianosa e rumaram para a pátria de Paoli e Napoleão.
No dia seguinte, ao subir à coberta, o que fazia sempre muito cedo, o patrão encontrou Dantès encostado à amurada do navio e a olhar com expressão estranha um amontoado de rochedos graníticos que o sol nascente inundava de uma luz rosada: era a ilha de Monte-Cristo.
A Jeune-Amélie deixou-a a três quartos de légua, aproximadamente, a estibordo e continuou a navegar para a Córsega.