- Sim, lembro-me perfeitamente - respondeu Monte-Cristo. - Se me não engano, esse digno homem era até vosso associado.
- Exacto - confirmou Bertuccio. - Mas havia sete ou oito anos cedera o estabelecimento a um antigo alfaiate de Marselha, o qual, depois de se arruinar na sua profissão, resolvera tentar enriquecer noutra. Escusado será dizer que os entendimentos que tínhamos com o primeiro proprietário foram mantidos com o segundo. Era portanto a esse homem que esperava pedir asilo.
- E como se chamava esse homem? - perguntou o conde, que parecia começar a interessar-se pela história de Bertuccio.
- Chamava-se Gaspard Caderousse e era casado com uma mulher da aldeia de Carconte, que só conhecíamos pelo nome da sua terra. Tratava-se de uma pobre mulher atacada da febre dos pântanos, que ia morrendo de definhamento. Quanto ao homem, era um latagão de quarenta a quarenta e cinco anos, que por mais de uma vez, em circunstâncias difíceis, nos dera provas da sua presença de espírito e da sua coragem.
- E diz - atalhou Monte-Cristo-que essas coisas se passavam por volta do ano de...
- De 1829, Sr. Conde.
- Em que mês?
- No mês de Junho.
- No princípio ou no fim?
- No dia 3 à tarde.
- Ah! - exclamou Monte-Cristo - Com que então no dia 3 de Junho de 1829. Bem, continue.
- Era portanto a Caderousse que contava pedir asilo. Mas, como habitualmente, mesmo em circunstâncias normais, não entrávamos pela porta que dava para a estrada, resolvi não contrariar esse costume e saltei a sebe do jardim, deslizei agachado através das oliveiras raquíticas e das figueiras bravas e alcancei, receando que Caderousse tivesse algum viajante na estalagem, uma espécie de desvão em que por mais de uma vez passara a noite como se dormisse na melhor cama. Esse desvão ficava separado da sala comum do rés-do-chão da estalagem apenas por um tabique de madeira, no qual, em nossa intenção, tinham sido abertos buracos a fim de, através deles, espreitarmos o momento oportuno de darmos a saber a nossa presença nas imediações. Contava, se Caderousse estivesse sozinho, preveni-lo da minha chegada, acabar em casa dele a refeição interrompida pelo aparecimento dos guardas-fiscais e aproveitar a tempestade que se avizinhava para voltar às margens do Ródano e verificar o que acontecera à barca e aos que lá tinham ficado. Esgueirei-me portanto para o desvão, e fiz bem, pois nesse mesmo momento Caderousse entrava no estabelecimento com um desconhecido.
«Fiquei quieto e esperei, não com a intenção de surpreender os segredos do meu hospedeiro, mas sim porque não podia fazer outra coisa.