O Conde de Monte Cristo - Cap. 106: A partilha Pág. 988 / 1080

Mercédès, apeada do ambiente em que vivia, isolada na nova esfera que escolhera, como essas pessoas que saem de uma sala esplendidamente iluminada para entrarem de súbito nas trevas; Mercédès parecia uma rainha que passara do seu palácio para uma cabana e que, reduzida ao estritamente indispensável, não se reconhecia nem na louça de barro que era obrigada a pôr pessoalmente na mesa, nem no catre por que trocara o seu leito.

Efectivamente, a bela catalã, como a nobre condessa, já não tinha nem o seu olhar orgulhoso, nem o seu sorriso encantador, porque quando pousava os olhos no que a rodeava só via objectos pobres. Era um quarto forrado com um desses papeis em que predominam os tons cinzentos, que os senhorios económicos escolhem de preferência por serem os que menos se sujam; não havia tapetes no chão e os móveis davam nas vistas e forçavam os olhos a deterem-se na pobreza de um falso luxo. Enfim, tudo coisas que quebravam com os seus tons garridos a harmonia tão necessária a olhos habituados a um conjunto elegante.

A Sr.ª de Morcerf vivia ali desde que deixara o seu palácio. A cabeça andava-lhe à roda perante aquele silêncio eterno, como anda à roda ao viajante chegado à beira de um abismo. Notando que Albert a observava constantemente às escondidas, para descobrir o seu estado de espírito, obrigara-se a um monótono sorriso dos lábios, que, na ausência desse fogo tão suave do sorriso dos olhos, produz o efeito de uma simples reverberação de luz, isto é, de uma claridade sem calor.

Pela sua parte, Albert andava preocupado e sentia-se pouco à vontade, constrangido, com um resto de luxo que o impedia de assumir a sua condição actual. Queria sair sem luvas e achava as mãos demasiado brancas, queria percorrer a cidade a pé e achava as botas demasiado brilhantes.

No entanto, estas duas criaturas tão nobres e inteligentes, ligadas indissoluvelmente pelos laços do amor maternal e filial, tinham conseguido compreender-se sem falar de nada e economizar todos os rodeios usados entre amigos para estabelecer a verdade material de que depende a vida.

Albert pudera finalmente dizer à mãe sem a fazer empalidecer:

- Minha mãe, já não temos dinheiro.

Mercédès nunca conhecera verdadeiramente a miséria; muitas vezes, na sua juventude, ela própria falara de pobreza, mas isso não era a mesma coisa: pobreza e necessidade são sinónimos entre os quais há Um mundo de intervalo.

Entre os Catalães, Mercédès tinha necessidade de muitas coisas, mas nunca lhe faltavam outras. Enquanto as redes estavam boas, pescava-se o peixe; vendido o peixe, tinha-se fio para consertar as redes.

E depois, privada de afectos, tendo apenas um amor que em nada interferia nos pormenores materiais da situação, cada um pensava em si, só em si e em mais ninguém.





Os capítulos deste livro

Marselha - A Chegada 1 O pai e o filho 8 Os Catalães 14 A Conspiração 23 O banquete de noivado 28 O substituto do Procurador Régio 38 O interrogatório 47 O Castelo de If 57 A festa de noivado 66 Os Cem Dias 89 O número 34 e o número 27 106 Um sábio italiano 120 A cela do abade 128 O Tesouro 143 O terceiro ataque 153 O cemitério do Castelo de If 162 A Ilha de Tiboulen 167 Os contrabandistas 178 A ilha de Monte-Cristo 185 Deslumbramento 192 O desconhecido 200 A Estalagem da Ponte do Gard 206 O relato 217 Os registos das prisões 228 Acasa Morrel 233 O 5 de Stembro 244 Itália - Simbad, o marinheiro 257 Despertar 278 Bandidos Romanos 283 Aparição 309 A Mazzolata 327 O Carnaval de Roma 340 As Catacumbas de São Sebastião 356 O encontro 369 Os convivas 375 O almoço 392 A apresentação 403 O Sr. Bertuccio 415 A Casa de Auteuil 419 A vendetta 425 A chuva de sangue 444 O crédito ilimitado 454 A parelha pigarça 464 Ideologia 474 Haydée 484 A família Morrel 488 Píramo e Tisbe 496 Toxicologia 505 Roberto, o diabo 519 A alta e a baixa 531 O major Cavalcanti 540 Andrea Cavalcanti 548 O campo de Luzerna 557 O Sr. Noirtier de Villefort 566 O testamento 573 O telégrafo 580 Meios de livrar um jardineiro dos ratos-dos-pomares que lhe comem os pêssegos 588 Os fantasmas 596 O jantar 604 O mendigo 613 Cena conjugal 620 Projetos de casamento 629 No gabinete do Procurador Régio 637 Um baile de Verão 647 As informações 653 O baile 661 O pão e o sal 668 A Sra. de Saint-Méran 672 A promessa 682 O jazigo da família Villefort 705 A ata da sessão 713 Os progressos de Cavalcanti filho 723 Haydée 732 Escrevem-nos de Janina 748 A limonada 762 A acusação 771 O quarto do padeiro reformado 776 O assalto 790 A mão de Deus 801 Beauchamp 806 A viagem 812 O julgamento 822 A provocação 834 O insulto 840 A Noite 848 O duelo 855 A mãe e o filho 865 O suicídio 871 Valentine 879 A confissão 885 O pai e a filha 895 O contrato 903 A estrada da Bélgica 912 A estalagem do sino e da garrafa 917 A lei 928 A aparição 937 Locusta 943 Valentine 948 Maximilien 953 A assinatura de Danglars 961 O Cemitério do Père-lachaise 970 A partilha 981 O covil dos leões 994 O juiz 1001 No tribunal 1009 O libelo acusatório 1014 Expiação 1021 A partida 1028 O passado 1039 Peppino 1049 A ementa de Luigi Vampa 1058 O Perdão 1064 O 5 de Outubro 1069