Nos casos mais lacrimáveis e trágicos, querem fados maus que os olhos achem sempre pasto à cobiça, quando a impressão devera ser toda para levantamentos de espírito, e «visões altas», como diz o bom Sá de Miranda.
Quando a arte desonesta não despe as figuras, veste-as de feitio que pelo ondeado das roupas transparentes esteja o pecado a fazer negaças a conjecturas tais que, certo estou, Calisto Elói, antes de se empestar em Lisboa, se tais impudicícias visse, romperia no Parlamento os vesúvios da sua eloquente indignação. E a posteridade, ajuizando da moral desta nossa idade de limos e alforrecas, viria a este lameiral esgaravatar a pérola da idade áurea, caída dos lábios do marido de D. Teodora, a qual, segundo fica dito, dormia de touca e lencinho de algodão azul de três pontas.
Esta peregrina imagem não bastou a desandar Calisto pelo caminho de Lisboa, e do seu gabinete, onde os pergaminhos dos seus livros pareciam rever lágrimas de amigos descaroavelmente desprezados. O infeliz não desfitava olhos de certa janela, desde que vira perpassar uma luz pelos resquícios das portadas. Podia a traída Teodora antepor-se aos olhos extasiados do esposo, com a pudenda touca, ou com as madeixas estreladas de brilhantes, que ele não a via nem queria ver.
Aí por volta da meia-noite estava Calisto recordando o que dissera, em circunstâncias análogas, Palmeirim, aquele grão cavaleiro de Francisco de Morais, diante do castelo de Almourol que fechava em seus arcanos a formosa Miraguarda.