Uma Família Inglesa - Cap. 1: I - Espécie de prólogo, em que se faz uma apresentação ao leitor Pág. 3 / 432

de atemorizar as modéstias menos esquivas, protestos hiperbólicos de veneração a todo o transe, tudo isso escutava friamente e sem nem sequer experimentar certa agradável e voluptuosa titilação da alma – se me admitem a frase – que em quase todos os filhos de Eva – primeira e mal estreada vítima da lisonja – produzem sempre os panegíricos do merecimento próprio, entoados por bocas alheias.

A mesma indiferença, a mesma, senão absoluta impassibilidade, estabilidade de razão pelo menos, com que, uns após outros, esvaziava copos de cerveja e cálices do Porto e Madeira, de rum, de conhaque, de kummel, de gingerbeer, e até de absinto, libações que a qualquer pessoa menos inglesmente organizada ameaçariam, em pouco tempo, com as mais pavorosas consequências de um completo alcoolismo; essa mesma indiferença e impassibilidade opunha ao efeito, não menos inebriante, das lisonjas de que lhe enchiam os ouvidos.

A eloquência cortesã dos seus muitos entusiastas mais do que uma vez a recebia assobiando distraidamente, mas sem a menor afectação, o nacional God save the queen, ao qual marcava o compasso com a cabeça ou com a bengala.

Não se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro cumprimento. Aqueles que têm por costume semear lisonjas, para depois as colherem, em proveito próprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone terreno ingrato para tal género de cultura; não vingavam lá.

A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares convencionais, muito à moda nas salas e que variam com as épocas, hesitar-se-ia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.

A delicadeza que ele praticava não era de facto essa. Fazia-a consistir toda, a sua, nos sentimentos e nas acções inspiradas pelos eternos e invariáveis ditames da consciência e da razão, superiores portanto às flutuações caprichosas da moda.





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