O Mistério da Estrada de Sintra - Cap. 31: CAPÍTULO IV Pág. 176 / 245

que incomparável angustia devia ter passado em algumas horas por este desgraçado corpo para o devastar assim!

Na rua, a pequena distância, um realejo tocava um pot-pourri de várias óperas, e, ao som desse corrido martelar idiota da música mecânica, pareceu-me ver desfilar em louca debandada no ar, entre mim e a pobre senhora, como numa espécie de evocação ao mesmo tempo trágica e grotesca, todos os grandes símbolos das educações sentimentais, ladainha viva das paixões elegantes, girando sob a manivela do seu realejo, num redemoinho fúnebre, de dança dos mortos, em torno desse corpo desfalecido, como as visões da vida passada, figuradas nos velhos retábulos, em torno do leito das monjas moribundas.

Era como se, no decorrer dessa música, automática como um andar de sonâmbulo, eu visse perpassar no espaço a grande ronda das tentações que na vida levaram consigo o destino desta criatura: os pálidos Manriques e os febris Manfredos, trazendo sob a capa das poéticas aventuras a bravura cavaleirosa de campeador Rui de Bivar ou do paladino Rolando, a melancolia de Hamlet, a exaltação sentimental de Werter, a revolta do Fausto, a sociedade de D. Juan, o tédio de Childe Harold; e toda a legião dramática das belas mulheres amadas: Francesca, Margarida, Julieta, Ofélia, Virgínia e Manon.

E, em grinalda de beijos secos, de beijos de pau, matraqueados no instrumento da rua, todas essas figuras de amorosas legendas bailavam misteriosamente ao som da Traviata, da Lúcia, do Bale in maschera.

- Amor! amor! amor! - tal foi decerto a letra da grande aria que constantemente lhe cantaram através de toda a sua existência de mulher bela, instruída e rica.

Foi nesse mundo moral que a sua imaginação habitou e que se fez o seu pobre espirito de linda criatura ociosa e desejada.





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