Como poderia ela adivinhar a honesta serenidade dos destinos simples no meio de uma existência tão complicadamente artificial como a sua?
Fora dos interesses da elegância, da moda, talvez da arte, que conhecia ela de serio e de grave na vida senão a religião e o amor? Tinha um missal e um marido. É pouco para o equilíbrio de uma alma, principalmente desde que o missal cessa de convencer e o marido cessa de amar.
As que tem um salão, uma carruagem, um camarote na ópera, um cofre cheio de joias, um quarto cheio de vestidos, não podem ser as singelas mulheres que passam a vida a dar de mamar aos filhos e a vender cerveja, como diz o Iago, de Shakespeare; nem podem resumir o seu destino fácil em ter filhos, chorar e fiar na roca, como diz Sancho Pansa. Esta não vendia cerveja, não a ensinaram a fiar… Chorou apenas.
Quem sabe se na sua dourada existência a amargura das lágrimas a não compensou hoje de tudo quanto ignora da amargura da vida!
E tive uma paixão sincera com um remorso profundo das palavras cruéis que lhe dissera.
Que poderia eu fazer para a salvar? Não o sabia. Achava-me porém resolvido a tudo, a sacrificar-me inteiramente, para lhe valer.
Devo dizer também que, vendo-a, ouvindo-a, eu não supus nem por um momento que no homicídio de que ela se acusava pudesse haver o que se chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenção infame ou perversa. Um criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem fala assim, nem se denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta forma a uma pessoa quase estranha, quase desconhecida. Ela tinha-mo dito com a mesma simplicidade com que o gritaria da janela para a rua, sem a mínima preocupação de se salvar. Cheguei a pensar por um momento que não tinha diante de mim senão uma estranha nevrose, um caso de alucinação, de delírio raciocinado.