Ao mesmo tempo ergueu-se-me do outro lado da mesa a abantesma do susto, cravando os olhos em mim e espalmando por cima das iguarias a sua mão descarnada e tremula com um gesto proibitivo e solene. Atarantado, perplexo, escutei então dentro de mim um breve diálogo semelhante àqueles que Xavier de Maistre travava de vez em quando com a besta, na sua viagem à volta do quarto.
Havia uma voz pausada e grave que dizia:
- Atenta no que fazes, temerário! abre teus olhos, inconsiderado mortal! Essa perdiz, cujo peito insidioso e pérfido está lourejando aos teus olhos, foi apimentada com arsénico. Aquele Chambertin, que te espera como uma onda da lagoa Stigia, emboscada por detrás daquele letreiro envernizado, aparentemente simples, elegante, convidativo, mas em verdade tenebroso e fatal como o dístico do festim de Baltazar, aquele vinho, que te oferece um beijo refalsado e fementido, está destemperado com ácido prússico. As trufas, lubricas, venais, devassas, envoltas nesses fígados de pato, estão empapadas nos temperos letais da cozinha dos Borgias!
A outra voz, insinuante e meiga, dizia numa vaga melodia de sereia:
- Come, se tens fome, estupido! Estás com medo do papão, maluco?… Põe os olhos nesse lacre: não será um penhor seguro da pureza do líquido que ele tapa a marca desse abonado sinete? Não vês hermeticamente fechada, chumbada e garantida com os mais especiais lavores a lata dessas sardinhas pescadas nas costas de França e cozinhadas há seis meses em Marselha? Não vês religiosamente grudada e selada com as etiquetas insuspeitas e sagradas da acreditada casa Chevet essa terrina de foie gras? Supões acaso, ó parlapatão, que meio mundo se conjurasse para te arrancar essa vida inútil? Come, bebe e dorme; aproveita nos braços da sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso.