Vai adiantada a manhã do dia seguinte àquele em que se passaram as cenas descritas já. São mais de onze horas. Carlos dorme ainda.
Recolhera-se à hora crítica em que principiam a desmaiar as estrelas no firmamento, a agitarem-se nos ninhos as aves e a soarem na rua os socos de alguns operários mais matutinos. Que admira pois que durma, a sonhar talvez a continuação, favorável aos seus desejos, de qualquer aventura incompleta do baile da véspera?
A situação da casa de Mr. Richard Whitestone facilitava esta infracção dos direitos do dia, que se fez para vigílias e trabalho, e não para sonhos e repouso.
O leitor, que é do Porto, quase me dispensa de dizer-lhe que era o bairro de Cedofeita aquele onde a família Whitestone vivia.
Esta nossa cidade – seja dito para aquelas pessoas que porventura a conhecem menos – divide-se naturalmente em três regiões, distintas por fisionomias particulares.
A região oriental, a central e a ocidental.
O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o brasileiro; o ocidental, o inglês.
No primeiro predominam a loja, o balcão, o escritório, a casa de muitas janelas e de extensas varandas, as crueldades arquitectónicas, a que se sujeitam velhos casarões com o intento de os modernizar; o saguão, a viela independente das posturas municipais e à absoluta disposição dos moradores das vizinhanças; a rua estreita, muito vigiada de polícias; as ruas em cujas esquinas estacionam galegos armados de pau e corda e os cadeirinhas com o capote clássico; as ruas ameaçadas de procissões, e as mais propensas a lama; aquelas onde mais se compra e vende; onde mais se trabalha de dia, onde mais se dorme de noite. Há ainda neste bairro muitos ares do velho burgo do Bispo, não obstante as aparências modernas que revestiu.