recebia aqueles preitos, olhava sobranceiro aquela opulência, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em vez de cobrir os ombros com o manto real que lhe estendiam aos pés, permanecia áspero, severo e nu, como nas épocas primitivas em que uma convulsão tremenda o evocara do seio da terra, para o consolidar em colosso.
Apenas, como símbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda, que, havia perto de um século, a piedade cristã plantara em volta da ermida, para refrigério e conforto dos devotos cristãos que ali iam. Era custosa a ascensão por o lado por onde os nossos romeiros, contra os conselhos de D. Vitória, a empreendiam.
Quando, ao sair de uma longa rua, apertada entre muros e quintas, Henrique achou de súbito diante de si a mole imensa e talhada quase a pique, que lhe disseram tinha de subir, ele, que raro em Lisboa estendia além do Rossio os seus passeios, com medo das íngremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um absurdo.
Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que dele o separava.
O riacho, engrossado pelas águas da chuva dos dias anteriores, levantava um bramido atordoador, ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rápido pela cale da azenha, que lhe obstruía o leito e cuja enorme roda movia.
Àquela hora, ainda pouco clara, da madrugada, este sítio da raiz do monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancólico que quase infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes negras, os troncos flexuosos e despidos das vides; mais longe, o canavial, ondulando ligeiramente ao perpassar através dele a brisa da madrugada, e, aqui e além, um desses degenerados aloés dos nossos climas, débeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua verdadeira pátria, eram acessórios que concorriam para o efeito geral do quadro.