II O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no sólido portão de castanho, diante do qual tinham parado.
As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao sinal e vieram ladrar à porta com uma fúria, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De facto as intenções dos quadrúpedes não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando- -os de fora com uma vara de vime, apesar de quantas recomendações de prudência lhe fazia Henrique, não em demasia sossegado.
Afinal ouviu-se uma voz áspera e rouca, chamando os cães à ordem, se é lícito, sem irreverência, empregar neste caso a frase consagrada para outro género de algazarra.
Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e enfim um homem de lavoura, alto e magro, trazendo em punho um lampião de frouxíssima luz, apareceu- lhes à porta e saudou-os com a fórmula do estilo:
- Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.
E, levantando a luz à altura do rosto de Henrique, pôs-se a mirá-lo com a menos cerimoniosa curiosidade.
- É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?
- Sou eu mesmo.
- Está um tempo muito azedo. Eu já julgava que não vinham. Entre.
Henrique não se resolvia a aceitar o convite, porque lhe continuavam a impor respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrúpedes, cuja má vontade era a custo refreada.
- Entre, entre - insistia o homem.
- Mas esses animalejos?...
- Ah! isto não faz mal. Sai-te p’ra lá, Lobo; passa, Tirano! Lobo! Tirano! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!
- C’os diabos! ti’Manuel - disse o almocreve - em ocasião de esperarem hóspedes, não se soltam assim os cães.